Imbuída da maior boa vontade, decidi separar alguns dos livros que lia em criança para dar a uns miúdos que conheço e que gostam de ler. Isso de dizerem que os putos não gostam de ler é uma mentirada de todo o tamanho – a maior parte das bibliotecas infanto-juvenis têm mais adeptos do que as bibliotecas reservadas aos adultos e só isso já seria prova suficiente; claro que houve, há e sempre haverá crianças que não gostam, mas também não podemos ser todos iguais.
Os meus livros eram intemporais, coisas como a parafernália aventureira dos Cinco, dos Sete e outros em que a criançada come alarvemente grandes jantares e almoços ao ar livre, descobre, por intuição e esperteza congénitas, ladrões e contrabandistas muito mais depressa do que os totós da autoridade vigente, anseia pelas férias para ir acampar com o cão perto de faróis e rochedos e anda de bicicleta a mil à hora. Logo, livros que contam coisas verosímeis, susceptíveis de acontecer a qualquer tipo que tem entre 10 a 12 anos. Além disso, lembro-me perfeitamente que os pais destes heróis eram pessoas muito fora da realidade, sendo um deles até um cientista que não sabia que andava neste mundo, apesar de ser invulgarmente inteligente. Tal e qual a imagem que uma criança tem dos pais.
Infelizmente, tive de pôr de parte estas extraordinárias sagas, porque os putos a quem eu ia dar os livros eram bem mais novos e não liam livros com tantas páginas. Virei-me, assim, para os contos de encantar de Grimm e de Perrault. Com honestidade, deviam ser chamados contos de terror, tal é o grau de violência que encontrei naquelas páginas ao fim de tantos anos – assassinatos (neste particular, há de tudo, de fraticídios a parricídios, passando pelas outras variantes), canibalismo, mutilações, e um não acabar de cenas que fazem arrepiar os cabelos! Não sei como podia eu ter um sono descansadinho todas as noites, depois de ler uma historiazinha destas (“para dormir melhor”, meu Deus!).
Hansel e Gretel, por exemplo. Todos sabemos do que se trata: os pais vêem-se na penúria e decidem abandonar os filhos na floresta; eles, espertos, ouvem a conversa por acaso e tentam marcar o caminho com migalhas de pão que os passarinhos acabam por comer. Imaginem o sufoco que não terei tido, depois de ler este conto, quando ouvi discutir os problemas económicos lá de casa. Decerto nunca mais me senti confortável ao visitar o parque florestal do Capelo, intimamente pensando “é desta que fico atrás e não tenho irmãos mais velhos nem trouxe pão”. Felizmente, do Capelo até à Horta, seria fácil descobrir o caminho...
Polegarzinha, outro conto arrepiante. Nasceu de uma flor, sendo filha de uma senhora que desejava muito ter um filho. “Toma lá esta”, diz-lhe a fada. E a pobre da senhora tem de agradecer e tratar de uma filha do tamanho de um polegar! Não há direito! Isso é que há, segundo a moral da história, porque a senhora devia aprender a não desejar coisas para além do que a natureza lhe pode dar... A pobre da Polegarzinha ainda sofre mais do que a mãe; a certa altura, arranjam-lhe casamento com uma toupeira. Felizmente, tudo acaba como deve ser, claro. Isto dos humanos casarem com animais não é único deste conto, aliás, embora nunca seja explicado como é que as núpcias se processavam: A Bela e o Monstro, A Princesa e o Sapo, entre outros. Aliás, provavelmente, são as núpcias o único aspecto não explorado dos contos de fadas. Depois de viverem felizes para sempre, não há mais nada a acrescentar.
Porém, se não se pode falar de sexo, a violência não é um problema. Há uma carnificina quase constante e grandes chantagens psicológicas: bichos ardilosos atacam, como n’O Capuchinho Vermelho, perfídias angustiantes duram toda uma vida, como a miserável existência da Cinderela, famílias que nos odeiam e o mundo todo contra nós como o pobre Patinho Feio, gigantes que comem crianças e por aí fora. Acresce que nenhuma menina olhará com bons olhos uma madrasta depois de ler - e isto é só um exemplo - Branca de Neve, onde a malvada até o coração da enteada quis ter!... E já nem vou falar da fatal injecção que é para uma menina a ideia do Príncipe que nos há-de livrar dessas desgraças todas e que aparece em (quase) todas as histórias – compiladas por homens, claro!
Em todo o caso, como bem sabemos, os miúdos percepcionam o mundo de um modo completamente diferente dos adultos.Assim, “num primeiro nível, os contos de fadas ensinam pouco sobre a sociedade” tal como ela é hoje; mas ensinam muito “àcerca dos nossos conflitos interiores e soluções acertadas para estes” (Bettelheim). É por isso que continuam a ser tão populares – são terapêuticos e contêm a promessa de que o melhor ainda está para chegar: vamos ter todos um final feliz, mesmo que passemos muitas desventuras. Ou, por outras palavras, acaba tudo bem – se não estamos bem, é porque ainda não chegámos ao fim.