... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, September 15, 2006

O Nosso Mal


Há uma doença terrível, da qual pouco se fala abertamente, mas que julgo ser uma das que mais pessoas ataca a nível internacional.  As farmácias vêem-se desprovidas de medicamentos para combater os sintomas deste mal que grassa a olhos vistos. O facto é que causa imensas dores, que se situam ali mesmo na junção entre o braço e o antebraço, vulgarmente conhecidas por todos como dores de cotovelo. Agora, que já sabem do que estou a falar, pensem um bocadinho e vejam lá se não conhecem uma variedade absurda de pessoas afectadas por isto, por um motivo ou outro. Incrível, não é ?


Outro sintoma, claramente óbvio da patologia a que me refiro, é o tempo que os doentes passam a dedicar-se a um passatempo, que dadas as proporções desta catástrofe galopante, já se tornou no passatempo mundial: a maledicência.


Todavia, este hobby assume características muito peculiares na nossa cultura. Senão, vejamos: é tido como aceitável e até natural que um amigo de alguém diga deste as piores coisas quando o outro não se encontra presente, segundo a máxima « Sou amigo dele, mas não deixo de ver que fulano é um incapaz / um ignóbil / um estupor / um vendido / etc, etc, etc… ».  Apetece imediatamente  perguntar « Como é que és amigo de um incapaz / um ignóbil, … e mais esses adjectivos todos com que o brindaste agora ? » Sim, porque deve ser um grande fardo andar a aturar uma personalidade dessas ! Que peso ! Será para ganhar um cantinho no céu, à custa de sacrifícios ?


O contrário também se verifica (embora em muito menor grau, já se vê, e – como é óbvio ! – está fora do quadro sintomático da nossa patologia em análise): dizer bem de um suposto inimigo, adoptando a frasezita: « Nunca gramei esse sujeito, mas não deixo de reconhecer que é um tipo vertical… »


A que podemos atribuir esta estranha reversibilidade de papéis ? A uma dessincronização entre afecto e razão, e então, neste caso, o doente – coitadinho !-  não tem culpa de gostar tanto de gente tão odiosa e estapafúrdia como são os trastes dos amigos que tem, porque o coração tem razões que a razão desconhece, já diz o outro. No entanto, esta hipótese científica acabadinha agora mesmo de sair do forno, perdão, do tubo de ensaio mental, sofre já de problemáticas. É que quando chega o amigo do doente, tão maltratado por este anteriormente no seu discurso de maledicência, muda o disco – mas não toca o mesmo, não senhor ! E volta a ser o « amigalhaço », o « gajo porreiro », o « sabes que sempre gostei de ti, Manel ? »


A verdade é que quem sofre desta patologia tem uma ambição na vida – escalar (não a montanha do Pico, mas outras que, sendo tão materiais quanto essa, são de cariz mais económico). Consequentemente, como a economia é o que há de mais flutuante e instável neste mundo em que vivemos, nunca se sabe bem quem vai subir ou descer… Logo, o doente (que é hipócrita, sim, mas não é tolo !) não pode exprimir as suas reais opiniões abertamente, cultivando sempre a fidelidade a si próprio, mantendo-se à tona de água através dos esquemas que lhe permitem estar « de bem com toda a gente ».


Assim, estes doentes são, regra geral, « tipos fixes »  cujos companheiros em corrente dão a volta aos Açores dezenas de vezes… Pena é que não se comportem como amigos, desconhecendo o conceito essencial de « lealdade ». Claro que a insistente dor na junção do braço com o antebraço incomoda e não deixa pensar (nem sentir muito para além da dita…), pelo que é compreensível que os conceitos se esfumem ! É como pedir a alguém com uma enxaqueca persistente que recite Os Lusíadas.


Outra manha é a de fingirem que não estavam a falar do amigo A, mas sim do amigo B quando disseram a atrocidade Z : « Ó António ! Mas tu achas que eu ia dizer uma coisa dessas acerca de ti, eu que respeito tanto o teu trabalho e a tua conduta ?! Claro que aquilo que eu disse era a respeito da Ana, pá ! Toda a gente que estava ali percebeu, só tu é que não queres ver… »  Daí que os que sofrem deste mal tenham sempre o cuidado de evitar situações muito concretas, e prefiram que sejam os seus interlocutores a pronunciar nomes próprios ; dizem, quase sempre, « ele » e « ela » - que seria desta gente se se banissem os pronomes pessoais de sujeito ?


Entretanto, a epidemia continua a fazer vítimas. Tanto que a desconfiança surge entre amigos como um bichinho roedor, uma destruidora (talvez uma térmita, bicho que anda na moda e anda agora a ser estudado por cá). Até mesmo quando uma pessoa escreve uma simples opinião, logo se levantam sobrancelhas e lhe perguntam : « Ouve lá, Albina, aquilo… por acaso… não seria para mim, não ?! »