Visto que chegámos outra vez àquela época do ano lamechas dos coraçõezinhos nas montras comerciais, vamos lá falar desse fogo que arde e que se vê - o ciúme.
De entrada, digo já que não sou ciumenta para além do que se crê normal num ser humano que ama, ou seja, obviamente que acho que todos os outros seres humanos só podem estar secretamente apaixonados por aquele de quem eu gosto e a partir daí observo-os atentamente e com total desconfiança. E ele, o meu amor? Pois ele, naturalmente, que é incapaz de desejar outra mulher que não eu e é por saber que ele nem levanta os olhos para mais nenhuma das presentes nem imagina coisa alguma com as ausentes que eu o trago completamente debaixo de mira. Sem que ele perceba, claro está.
É muito importante, aliás, que ele não perceba nem sonhe. Se desse por isso, era capaz de lhe dar uma ânsiazita de evasão. Cruzes credo! Eu quero é que ele fique aqui amarrado de tal forma que só eu saiba desfazer o nó.
Afinal o que é o ciúme? O ciúme é aquele medo enorme e incontrolável de que a outra pessoa nos fuja. Uns ciúmes moderados, assim uma pontinha, como quem polvilha de especiarias um prato, até podem ser considerados uma coisa bonita, um picantezinho extra. Algum de vocês imagina relação mais aborrecida que aquela em que sabemos que o nosso amor está completamente apanhado e não foge? Só se for aquela em que sabemos que estamos completamente enfadados dele, porque já não há mais nada a descobrir. De qualquer modo, não exageremos. A pior coisa que se pode fazer neste mundo de afectos será instaurar o regime fascista do controlo absoluto.
Então, como é que se pode fazer uma elegante gestão da liberdade desse ser amado a quem apetece envolver entre os nossos dedinhos? Boa pergunta. É tanto mais boa pergunta quanto eu nunca, jamais, em caso algum suportaria que alguém me limitasse coisa alguma. Recorrendo aos sábios conselhos da minha avó, dir-vos-ei que todo o controlo deve ser como o dos Serviços Secretos.
O ciúme pressupõe a presumível existência - na grande maioria das vezes, apenas fantasiada pela imaginação delirante e ciumenta - de casos de infidelidade. Porém, caros amigos ciumentos, nunca houve tão pouco motivo para preocupações como hoje em dia.
Como diz um grande amigo meu, já não há boas infidelidades porque já ninguém perde a cabeça. Daquelas à Eça de Queiroz em que as mulheres arriscavam o casamento e os homens a posição social (o contrário jamais se verificava e dois séculos depois ainda é assim a regra geral), nas quais havia um sentido trágico e delirante, tipo ópera La Traviata . Hoje não. Alguém seria capaz de hoje arrumar a sua mala de roupinhas e fugir com o amante, sabendo que nunca mais seria olhada de frente na rua quando antes servia chá com bolinhos à alta sociedade? Nem pensar. Isso era no século XIX. Hoje somos pessoas sérias. Quando há demasiada paixão no ar, tomamos Xanax para acalmar. Jamais rolarão pescoços. Estão presos pelas gravatas deles e pelos colares de ouro delas.
Resumindo: hoje, apesar de toda a gente dizer que a sociedade livre oferece mil e um perigos e blablabla, é só conversa. Entenda-se o “só conversa” literalmente. Descansai as vossas almas, amiguinhos do ciúme de faca e alguidar de sangue. Nunca há-de a conversa chegar a vias de facto, porque hoje as pessoas não estão para adultérios. O pessoal respeita muito o mandamento sexto da Nova Lei de Deus, que é como quem diz “Não darás motivos para que fale de ti a tua vizinha”. Se bem que o castigo não seja perder o Paraíso (porque no Inferno já nos encarregaríamos de o fazer cozer em fogo brando e continuado), aproxima-se muito do bom e velho antigo apedrejamento em via pública. Seria preciso muita ópera e sentimento para levar avante um amor anti-social. Convenhamos que com coraçõezinhos “I love you” não vamos lá.
Então, para terminar, e recorrendo de novo à minha sábia avó, um conselho de pacote para a brigada do ciúme: é preciso fazer o outro ter pena. “Tu nunca gostaste de mim”; “Eu sou tão infeliz e desesperado(a) sem ti”; “Eu que sempre me dediquei ao nosso amor”; “Sabes que o facto de ter estado com outra (o) não significa nada, porque só me lembrava da tua cara...”; “Eu sou capaz até de perder a vida se me deixares”. A culpa move montanhas nesses espíritos sensíveis que um dia gostaram de nós. Os infelizes.
E, para não desmoralizar o outro lado, outro conselho de pacote, recorrendo ao meu sábio avô, para a brigada dos infiéis: existe sempre a filosofia do compensa. Ou seja, se estou a ser infiel a quem estou legalmente ligado, por outro lado estou a ser fiel a quem estou afectivamente ligado (se, dramaticamente, não calhar serem a mesma pessoa,...). Pois, vendo bem, compensa. Faz-me feliz. Que se lixe.
Finalmente, a pedra de toque inventada pelas espertalhonas das mulheres: há uma ideia muito em voga nas cabeças masculinas (tradicionalmente ciumentas e infiéis, embora nem sempre acompanhadas pelo resto do corpo) que é a de que os homens continuam a trair muito mais do que as mulheres, enquanto essas cândidas e sofridas criaturas ficam em casa carpindo as misérias de estarem a ser traídas. Isso é que era, senhores. Se os homens traem e as amantíssimas e sofredoras mulheres se retraem, com quem, ao certo, é que os homens se divertem?