... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, June 19, 2008

Os Livros que a Minha Tia Jamais Entenderia

Não sou um escritor de ficção didáctica.[...]
Para mim, um escrito ficcional existe apenas na medida em que provoca
- e digo-o francamente - bem-estar estético, ou seja, o sentimento de estar, 
de algum modo, ligado com outros estados do ser onde a Arte (e também a 
Curiosidade, a Ternura, a Delicadeza, o Êxtase) é a norma. 
Não há muitas obras assim. 

Vladimir Nabokov


Recentemente, estive em várias apresentações de livros e em todas, felizmente, estava presente o autor. Parêntesis para dizer quão triste é uma apresentação de livro póstumo, até porque ficamos todos seriamente a remoer se o autor queria mesmo que a obra se publicasse, embora ninguém tenha coragem sequer de o murmurar. Sim, porque a ideia de que a família conhece os desejos e desígnios do mesmo é muito discutível - todos nós sabemos como funcionam as dinâmicas familiares e a de alguém famoso não tem por que ser diferente... Adiante.

O ponto é que em toda a apresentação de uma obra está sempre aquele que vai dissertar um bocadinho sobre ela. Eu própria já estive nessa situação (como autora e também como apresentadora de uma autor) e sei como é complexo falar sobre a obra de alguém que está ali ao nosso lado e que, depois, vai usar da palavra. Em boa verdade, o perigo não é assim tão grande, pois seria preciso uma fera em estado de sobreexcitação para contestar publicamente o que se acaba de dizer (pois mesmo que esteja redondamente errado, é sempre fatalmente lisonjeiro) sobre a sua pessoa e ademais publicação.

No entanto, é muito curioso ver o que diz quem apresenta o livro, sobretudo a dois níveis. Primeiro, a ideia tão frequentemente transmitida do "propósito do autor" ou, um pouco mais corriqueiro e grave, "a mensagem que o autor nos quer dizer". De facto, a mensagem - se é que ela existe de modo tão concreto e para-literário - só o autor a pode saber e revelar. Toda e qualquer outra ideia que seja quem for retire do livro é apenas e tão só a sua interpretação do mesmo, por mais literato que esse alguém seja.

Ora, como sabemos, as interpretações são como as sentenças - cada qual tem a sua. Não é por isso de estranhar que sejamos confrontados com um certo ar de surpresa resignada dos autores dos livros (que poderíamos traduzir por "hã?!?!") pois realmente rara será a vez que um escritor terá pensado na suposta mensagem que o comentador ali afirma como propósito mais que certo da obra. Já dizia Nabokov, quando o instigavam a comentar a origem e desenvolvimento das suas obras: "Por acaso, pertenço àquele tipo de autores que, ao começar a trabalhar num livro, não tenho outro propósito que não seja o de me livrar dele!"

Geralmente, estas interpretações são férteis em termos fora do uso comum, o que me leva ao segundo nível de comentários das obras, mais teórico e menos subjectivo, que é moda dos comentadores mais directamente ligados à Literatura. Os Teóricos Literários levam-se muito a sério, mais do que à própria Literatura e têm até muita dificuldade em inserir nesta última algo que não se enquadre dentro dos padrões habituais. Assim, a primeira coisa a fazer quando reconhecem um autor é inseri-lo numa escola, verificar em que género literário está aquilo em que escreve, as categorias da narrativa e do discurso e fazer com que as excentricidades criativas do autor sejam correctamente apadrinhadas dentro do cânone. Caso contrário, é a morte do artista.


Não há, porém, maior tédio, do que ver um destes senhores a apresentar uma obra...logo temos "a prólepse que nos leva a uma maior compreensão da diégese"; "o narrador empírico e omnisciente que se confunde com o autor, embora, naturalmente, não devamos esquecer a célebre distinção de ambos"; "a intratextualidade das personagens redondas"... entre outras preciosidades. Após 10 páginas disto, raro é o elemento do público que consegue aguentar as pestanas. Porém, todos, sem excepção, batem palmas, com receio de que o ouvinte do lado, os julguem menos cultos. alguns chegam a comentar a "essência" desta abordagem. Mas o facto é que apenas 1 em 100 terá entendido alguma coisa! E o mais engraçado é que o autor de uma obra ficcional está-se literalmente nas tintas para a Teoria da Literatura e acha risível todos estes termos nos quais, realmente, nunca pensa quando está a escrever. Ou acham que um tipo se senta a escrever pensando: "Agora o que se me dava aqui fazer era uma rememoriação analéptica, para que a história ganhasse mais volume! Ao trabalho!"

Ultimamente, também os jornalistas gostam de fazer umas reportagens a atirar para o incompreensível: com palavras muito caras, mas sem sumo nenhum após a sua desconstrução. A isto, um amigo meu chama "reportagens que a [sua] tia não entende", sendo esta tia, obviamente, uma personificação do povo. Pois, estas apresentações de livros a minha tia jamais entenderia...