... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, October 3, 2008

A Figura que é do Público

Uma revista canadiana, La Voix du Succès, tem uma rubrica completamente inusitada onde analisam psicologicamente uma figura pública e lhe dão, ademais, conselhos sobre como harmonizar o seu espírito intimamente e a sua vida, de acordo com as perturbações que o psicólogo de serviço crê ter-lhe encontrado.
Não se pense que a figura pública responde a questões ou que são retiradas informações de entrevistas que esta tenha dado ou de atitudes que tenha demonstrado. O psicólogo simplesmente interpreta o que conhece da personalidade em questão (conhecimento igual ao de qualquer espectador de TV ou leitor de jornal) mas pondo em acção a sua teoria académica e experiência profissional. O consentimento do analisado não é para ali chamado, o que é muito curioso num país com leis tão rigorosas em relação ao assédio (por exemplo). Porque não também em relação à privacidade?

Folheando um número antigo - de 2005/2006, e escolhi este por ser da época em que eu habitava no país - encontrei uma análise à vida da sra Michaëlle Jean, que tinha acabado de assumir o cargo de Governadora-Geral do canadá (não é coisa pouca...), sendo antes uma conhecida jornalista. Quando digo "à vida", faço-o no sentido literal, pois não só interessa a sua nomeação e mudança de estatuto de figura pública - ela já o era antes, bem entendido - como também o seu casamento com um cineasta, a sua maternidade mais ou menos recente, o facto de ser jovem e até a culpa máxima de ser bonita e elegante. Ranjam os dentes, Grrrrr. Haviam de lhe encontrar uma perturbação qualquer, à falta de um podrezinho demonstrado em público.
"Gostaria de realçar que não vou falar do indivíduo Michaëlle Jean, mas sim da personagem pública e sua função oficial. Ao tê-la aceite, ela tornou-se objecto de fascínio." Mas, mais à frente, salta logo é sobre a vida pessoal da dita, a "vida de casal" onde, segundo ele, "as coisas vão confundir-se, porque não mais haverá intimidade e [...] a sua função constrange a liberdade do par. Os papéis da relação são mal definidos (aqui apetece perguntar se, como homem, repugna ao senhor psicólogo que a Senhora Governadora tenha mais destaque que o marido?!) e, no casal, um realiza-se através do outro" (bom, em assuntos íntimos esta frase não me parece má, mas suspeito que não é de intimidade que aqui se trata, mas sim de um deles gozar do estatuto de figura pública só porque é par do outro, coisa que aqueles espíritos que não têm brilho por si próprios acabam sempre por fazer, sejam homens ou mulheres. Pois temos muita pena deles.).

Tenho a dizer que não li nada na análise de uma página que dissesse respeito à figura pública ou ao seu desempenho profissional, anterior ou actual. A senhora é julgada por viajar muito e, assim, "prejudicar a rotina de segurança do quotidiano da sua jovem filha" (há que dar uma medalha ao marido cineasta, decero sempre disponível dentro da sua esfera artística boémia). Interroga-se o psicólogo se a Madame Jean "saberá o que acarretam as responsabilidades do seu cargo e também as responsabilidades de mãe, dado que são incompatíveis. Poderá ela assumir tudo?" Interrogo-me se não haverá uma empregada lá em casa, ou uma ama contratada, que fique com a criança a maior parte do tempo, em vez do marido herói e socialmente deprimido. Além de que o senhor psicólogo certamente terá em conta que a Madame Jean pensou em tudo isto e muito mais antes dele e só ela sabe as linhas com que se vai cosendo e amargurando.


Quando questionado sobre a encarnação do sucesso que é esta figura pública, o senhor psicólogo responde que ela é "a projecção do sucesso", mas não mais pois é impossível conciliar tudo como Mme. Jean dá a impressão de fazer. Aqui, confesso que concordo, porque nalgum momento há que escolher e estar hiper realizado em tudo soa um bocadinho a falso...

A última questão: qual o conselho do psicólogo para uma maior estabilidade na vida da Senhora Governadora? Ele recomenda que Mme. preserve a sua vida íntima para que "a sua criança" - algo sempre susceptível de trazer uma lágrima aos leitores e leitoras mais sensíveis! - e ela própria encontrem "a harmonia possível". Subitamente, o marido já não interessa (deve ser naturalmente harmónico...); é de ressalvar o advérbio "possível", claramente indicativo de que "muita" harmonia não será, com certeza...

Ora, como é possível a Madame seguir este bom conselho vindo de quem escarafuncha a sua vida em detalhe, sem saber nada de concreto ou realista sobre a mesma?

Claro que se tudo isto se passasse numa terra geograficamente pequena como os Açores não seria necessária uma revista Voz do Sucesso. O "boca a boca" (não confundir com a respiração de emergência!) funciona muito melhor e rapidamente. Também não seriam necessários jornalista nem psicólogo encartados. Temos vários, sentados nos cafés ou de passagem pelas esquinas que, mesmo sem diploma, não se coíbem de exercer a experiência, afiando a língua.

Ainda mais curioso do que esta experiência é o facto de, com tanta assumida invasão do território privado e confusão deste com o domínio público, haver tanta gente ansiosa por se tornar figura pública. Sobretudo nesta época, nota-se uma verdadeira oferta de (quase) anónimos desejosos e frementes de serem do povo. Realmente, há senhores e senhoras cheios de despojamento e de coragem, não há?...