Na terra da minha avó, dizia-se que era de muito mau agouro enterrar um homem descalço. Perdem-se no tempo as origens desta superstição – seria ele mal recebido no Céu caso aparecesse sem botas? Certo é que se fazia mesmo o possível por enterrar as pessoas bem calçadas, com sapato engraxado e atacadores novos.
Ora quando morreu o Zé Latas levantou-se um problema muito sério. O Zé Latas era o vagabundo oficial da terra. Isto não é de espantar, toda a terra pequenina tem o seu, um pobre coitado que caíra em desgraça há já muitos anos e nunca mais se conseguira levantar. Talvez por falta de sapatos, quem sabe…
Fora de ironias, o Zé Latas vivia das esmolas de uns e de outros, vestia sempre os mesmos trapos e claro que sapatos não tinha. Também não tinha família, e, portanto, não se lhes podia ir pedir uma vestimenta condigna para enterrar o homem. Caixão arranjou-se, o Padre tomou conta do assunto. Deu-se então na terrinha uma onda de solidariedade pelo morto Zé Latas como nunca se vira pelo homem Zé Latas enquanto vivo – choveram camisas interiores e das outras, calças e casacos, peúgas novas em folha, houve mesmo quem desse um fato e uma gravata! E os sapatos, lustrosos, como devem ser, não ficaram atrás.
Acontece que o morto não colaborou. Era mesmo de esperar que o patife do Zé Latas, preguiçoso e bêbado, não quisesse fazer a sua parte… Pois por um não raro fenómeno nos mortos, o Zé Latas inchou. Aparentemente, e segundo o médico da terrinha “eram gases”. Credo, Sr. Dr., o homem não está morto? perguntavam as beatas. “Confirmo o Rigor Mortis. Mas os gases dentro do estômago e intestinos dos mortos, muitas vezes, acabam por sair e depois eles incham assim… Não se preocupem, o tipo não ressuscita!” dizia o médico, muito senhor da sua ciência em terra de cegos. Senhor, benzei-nos.
Morto mas muito mais gordo, não havia roupa que servisse ao Zé. E a caridade alheia que lhe dera um fato não dava dois para o bêbado maltrapilho oficial do vilarejo.
Felizmente, estava-se na altura em que começava a aparecer a mosca de Verão, quer-se dizer, a emigrantada, essa mosca um bocado mais gorda que aquilo que o Zé Latas estava. E logo sempre prontos a auxiliar os da sua terra, porque os viam muito pouco e estavam saudosos daquela miséria quentinha tão diferente do frio impessoal e endinheirado que tinham no dia a dia, disseram “Vamos vestir este morto, este pobre de Cristo!” E assim o fizeram.
No dia do enterro, toda a terrinha compareceu. O caixão estava aberto durante a missa para melhor se ver a roupa que calhava bem com o ar cheio e perfeito do morto, que nunca em vida parecera tão saudável. Tivera de ser uma roupa que lhe servisse, umas coisas americanas, largas, grandes. O Zé Latas estava de escuro e tivera de se vestir com roupa desportiva, mas tudo de marca boa! E cara. Mas o importante era nos pés balofos a ostentação de uns ténis, novos e sem um risco! O pé do morto muito virado para fora deixava mostrar na sola dos ténis, por debaixo da marca, em grandes letras, esta frase apropriada à ocasião:
“Nike - Long life tennis shoes”…