... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, February 1, 2013

Cinzentão



Há muito tempo que não havia um sucesso editorial tão grande como “Fifty Shades of Grey”, superando o último mega-vendas “Harry Potter”, curiosamente este sobretudo infantil enquanto o primeiro é para maiores de 18. 

“Fifty Shades of Grey” não é apenas “soft porn para donas de casa”; é, sobretudo, um livro sobre o sado-masoquismo, o domínio e a submissão levados ao extremo nas relações homem-mulher. Sempre que um mega sucesso editorial acontece, nem se questiona se a literatura é boa ou má – até porque, enquanto peça literária, é má… - ; o que apetece analisar é o fenómeno sociológico que está por trás desta corrida à obra.

 O que leva, então, a que 40 milhões de pessoas tenham adquirido um livro com uma historieta em que uma rapariguinha virgem, insegura e confusa aceita entrar num jogo contratual com um bilionário que assume um carácter negro e distante? A autora quer convencer-nos que isto é uma história de amor e que o Sr. Grey implora ser salvo pela mocinha, embora lhe bata. A parte mais reveladora de que 40 milhões de pessoas estão necessitadas de psiquiatra é que as críticas a “Fifty Shades of Grey” fazem assentar o jogo de domínio na parte sexual somente (onde, em última análise, sempre haverá domínio… embora sejam escusados e invulgares os jogos de humilhação que nesta obra se encontram). 

O bilionário - com direito a ter um helicóptero aos 27 anos para melhor encantar a mocinha em toda a sua grandiosidade - escreve-lhe uma lista “do que ela pode e não pode fazer” diariamente, que inclui o que ela pode e não pode comer. Além disso, rastreia-lhe as chamadas de telemóvel, persegue-a e outros mimos de verdadeiro psicopata. Mas os críticos do livro só se escandalizam com a tareia de cinto que o rapaz dá à moça… não encontrando nestas perfídias diárias nenhuma perversão! Desde quando o privar da liberdade individual não é indicador de uma patologia profunda? Parece-me estranho que se ache normal que um ser humano possa ser condicionado por outro a este ponto – como se a escravidão sexual fosse pecado, mas as outras formas de escravidão fossem aceitáveis na nossa sociedade! Pior: o livro defende que estas obsessões são prova de amor – desde que não sejam tiranias sexuais, toda a psicopatia é bem-vinda. Afinal, a emancipação feminina deu em quê? Em nada, pelos vistos…

Outro interessante fenómeno é o facto da autora nos passar a mensagem que o Sr. Grey é um ser humano cujo exacerbado domínio se deve a um insondável passado – repare-se que a própria família dele é obscura, porém metediça – e que a inexperiente mocinha pode ser o bálsamo que o vai “curar”, se jogar bem as cartas. O próprio Grey parece acreditar nisso, pois que ela – por alegadamente se “portar tão bem” – é a única mulher que ele leva a conhecer a sua mãe (Freud não faria melhor!). Por outro lado, a jovem tem também um deturpado sentido romanesco da vida, já que os seus heróis românticos são personagens complexas (o violador de “Tess” e o obsessivo amante de “Jane Eyre”). Que melhor companheira para um narcisista proveniente de uma família disfuncional do que uma dependente ansiosa pelo que ela imagina ser o perfeito galã, alguém que cultiva o falso (des)interesse, entre o “quero-te muito” e o “chega-te para lá” que mais a confunde.


Em conclusão: literariamente um fiasco, com figuras de estilo de uma pobreza deprimente e uma prosa que não se decide entre o rosa e o negro (as descrições dos orgasmos tornam-se hilariantes, de tão tontas e voyeurs que são); psicologicamente, leva a pensar porque é que tanta gente ficou excitadíssima com um livro sobre o domínio do homem sobre a mulher, pelas piores razões: acreditando que ele é natural em tudo, menos no sexo, e ainda achando que é da responsabilidade feminina modificar uma personalidade deturpada caso ela surja no caminho. E parece que esta saga já tem um volume 2. Está tudo doido.