Há muito tempo que não havia um sucesso editorial tão grande como “Fifty
Shades of Grey”, superando o último mega-vendas “Harry Potter”, curiosamente este
sobretudo infantil enquanto o primeiro é para maiores de 18.
“Fifty Shades of
Grey” não é apenas “soft porn para donas de casa”; é, sobretudo, um livro sobre
o sado-masoquismo, o domínio e a submissão levados ao extremo nas relações
homem-mulher. Sempre que um mega sucesso editorial acontece, nem se questiona se
a literatura é boa ou má – até porque, enquanto peça literária, é má… - ; o que
apetece analisar é o fenómeno sociológico que está por trás desta corrida à obra.
O que leva, então, a que 40 milhões de pessoas tenham adquirido um livro com
uma historieta em que uma rapariguinha virgem, insegura e confusa aceita entrar
num jogo contratual com um bilionário que assume um carácter negro e distante?
A autora quer convencer-nos que isto é uma história de amor e que o Sr. Grey
implora ser salvo pela mocinha, embora lhe bata. A parte mais reveladora de que
40 milhões de pessoas estão necessitadas de psiquiatra é que as críticas a “Fifty
Shades of Grey” fazem assentar o jogo de domínio na parte sexual somente (onde,
em última análise, sempre haverá domínio… embora sejam escusados e invulgares
os jogos de humilhação que nesta obra se encontram).
O bilionário - com direito
a ter um helicóptero aos 27 anos para melhor encantar a mocinha em toda a sua
grandiosidade - escreve-lhe uma lista “do que ela pode e não pode fazer” diariamente,
que inclui o que ela pode e não pode comer. Além disso, rastreia-lhe as
chamadas de telemóvel, persegue-a e outros mimos de verdadeiro psicopata. Mas
os críticos do livro só se escandalizam com a tareia de cinto que o rapaz dá à
moça… não encontrando nestas perfídias diárias nenhuma perversão! Desde quando
o privar da liberdade individual não é indicador de uma patologia profunda? Parece-me
estranho que se ache normal que um ser humano possa ser condicionado por outro
a este ponto – como se a escravidão sexual fosse pecado, mas as outras formas
de escravidão fossem aceitáveis na nossa sociedade! Pior: o livro defende que
estas obsessões são prova de amor – desde que não sejam tiranias sexuais, toda
a psicopatia é bem-vinda. Afinal, a emancipação feminina deu em quê? Em nada,
pelos vistos…
Outro interessante fenómeno é o facto da autora nos passar a mensagem que o
Sr. Grey é um ser humano cujo exacerbado domínio se deve a um insondável
passado – repare-se que a própria família dele é obscura, porém metediça – e
que a inexperiente mocinha pode ser o bálsamo que o vai “curar”, se jogar bem
as cartas. O próprio Grey parece acreditar nisso, pois que ela – por
alegadamente se “portar tão bem” – é a única mulher que ele leva a conhecer a
sua mãe (Freud não faria melhor!). Por outro lado, a jovem tem também um
deturpado sentido romanesco da vida, já que os seus heróis românticos são personagens
complexas (o violador de “Tess” e o obsessivo amante de “Jane Eyre”). Que
melhor companheira para um narcisista proveniente de uma família disfuncional do
que uma dependente ansiosa pelo que ela imagina ser o perfeito galã, alguém que
cultiva o falso (des)interesse, entre o “quero-te muito” e o “chega-te para lá”
que mais a confunde.
Em conclusão: literariamente um fiasco, com figuras de estilo de uma
pobreza deprimente e uma prosa que não se decide entre o rosa e o negro (as
descrições dos orgasmos tornam-se hilariantes, de tão tontas e voyeurs que
são); psicologicamente, leva a pensar porque é que tanta gente ficou
excitadíssima com um livro sobre o domínio do homem sobre a mulher, pelas
piores razões: acreditando que ele é natural em tudo, menos no sexo, e ainda
achando que é da responsabilidade feminina modificar uma personalidade
deturpada caso ela surja no caminho. E parece que esta saga já tem um volume 2.
Está tudo doido.