Todas as sociedades, conscientemente ou não, se definem de acordo com os seus valores. Individualmente, também assim acontece com cada um de nós enquanto seres humanos.
A nossa sociedade actual enfatiza muito a confiança como um valor
porta-estandarte, algo que todos devemos cultivar. É bom ser confiante, tanto
em si como positivamente esperar o melhor das situações. No entanto, a
confiança é uma qualidade que pode resvalar para o oposto extremo, isto é, um
indivíduo pode tornar-se demasiado confiante. O excesso de confiança é tão
perigoso para uma personalidade como a falta de confiança. Primeiro porque esse
extravasar exagerado é aquilo a que os ingleses chamam “cockiness”, muito
literalmente “uma atitude de galo”, que gostamos de traduzir por “arrogância”,
“desdém”, enfim… um injustificado agir perante o mundo de quem, na verdade, não
tem assim tanto de que se gabar. Segundo, porque o excesso de confiança é
perigoso para o seu portador, não raro precedendo a queda abrupta do indivíduo
por não ter calculado bem as suas habilidades e probabilidades.
É minha convicção que devíamos substituir este nosso chavão social de
ênfase na confiança pelo retorno à boa (e hoje um pouco esquecida) coragem. Na
Antiguidade, a coragem era um dos mais altos valores. Não sei em que momento
histórico deixaram de lhe dar valor – mas deve ter sido na mesma época em que
se convencionou dizer que “somos todos iguais”. Não somos todos iguais (e ainda
bem!). Porém, todos temos os mesmos direitos civis, o que é algo completamente
diverso. Mas isso é motivo para outra crónica.
Na Grécia Antiga, havia apenas uma palavra para denominar os conceitos de
“homem” e de “coragem”: Andrea. Bons tempos, esses, em que homem e coragem eram
sinónimos! Estamos hoje pelas ruas da amargura nesse respeito. Claro que,
quando o digo, refiro-me a uma perspectiva mais humanista, ou seja, os seres
humanos de hoje não primam pela coragem. De notar, todavia, que os gregos
quando utilizavam a palavra “homem”, isto é, Andrea, estavam mesmo a falar só
de quem tinha órgãos sexuais primários Y, porque não lhes tinha chegado ainda a
onda pós-moderna em que é politicamente incorrecto atribuir géneros. Havia,
pois, a noção de que o homem era, por definição intrínseca, um ser corajoso.
Dito de outra forma, na Grécia Antiga, a masculinidade era inseparável da
coragem. Havia mulheres corajosas? Certamente, sem discussão! A maior parte dos
mitos gregos o comprovam. Mas o ponto é que, a raiz grega da palavra “Andr-“
continha o conceito de masculino e simultaneamente de corajoso (vejam
“Andrómaca”, a personagem feminina de Tróia: “Eu sou a que luta como um homem,
eu sou a coragem do meu nome”). A virtude masculina por excelência podia ser
extensível a mulheres. O que não podia deixar de acontecer era existir coragem na
essência do homem para que ele fosse homem.
Já na Roma Antiga, a coragem fazia parte da Virtus. Note-se que a raiz latina
“Vir-“ também significa “homem” (ainda hoje, falamos de “virilidade”, por
exemplo). A Virtus romana era um pouco mais complexa do que a Andrea grega, porque
– como em tudo o resto – os romanos pegaram nos conceitos gregos, amassaram,
expandiram e apresentaram o mesmo sob roupagem mais pensada. O grego é muito
intuitivo e visceral; o romano é sempre mais cogitado e prudente. Nem de
propósito, a Virtus compunha-se de quatro coisas: a já falada coragem, a
mencionada prudência, e ainda a justiça e a temperança (equilíbrio, controlo do
ser). Mas continuamos na mesma senda: o homem não era homem se não fosse
corajoso. Pelo menos, não era um homem digno de ser assim chamado.
Há poucos dias, os meus alunos mostraram-me o original de um filme em
mandarim do qual eu só conhecia a versão inglesa. Era “Mulan”, dispensa
apresentações. O caso é que, na cena em inglês em que a princesa chinesa Mulan
finge ser um guerreiro, a versão inglesa diz “I will make a man out of you!”
(Farei de ti um homem!). Mas a versão em mandarim é clara… Não é isso que se
pretende. A versão em mandarim diz: “Yiao cheng wei nan zhi wan bu ren shu”
(Torna-te um homem viril, não admitas uma derrota) “Nan zhi wan” não é apenas um
homem; é um homem corajoso, um “homem que se porta como um homem”. A jovem
Mulan podia portar-se assim? Podia e fez. A coragem é extensiva a todos os que
a têm dentro de si. Assim a possuam!