... "And now for something completely different" Monty Python

Wednesday, February 23, 2022

Coragem

Todas as sociedades, conscientemente ou não, se definem de acordo com os seus valores. Individualmente, também assim acontece com cada um de nós enquanto seres humanos.

A nossa sociedade actual enfatiza muito a confiança como um valor porta-estandarte, algo que todos devemos cultivar. É bom ser confiante, tanto em si como positivamente esperar o melhor das situações. No entanto, a confiança é uma qualidade que pode resvalar para o oposto extremo, isto é, um indivíduo pode tornar-se demasiado confiante. O excesso de confiança é tão perigoso para uma personalidade como a falta de confiança. Primeiro porque esse extravasar exagerado é aquilo a que os ingleses chamam “cockiness”, muito literalmente “uma atitude de galo”, que gostamos de traduzir por “arrogância”, “desdém”, enfim… um injustificado agir perante o mundo de quem, na verdade, não tem assim tanto de que se gabar. Segundo, porque o excesso de confiança é perigoso para o seu portador, não raro precedendo a queda abrupta do indivíduo por não ter calculado bem as suas habilidades e probabilidades.

É minha convicção que devíamos substituir este nosso chavão social de ênfase na confiança pelo retorno à boa (e hoje um pouco esquecida) coragem. Na Antiguidade, a coragem era um dos mais altos valores. Não sei em que momento histórico deixaram de lhe dar valor – mas deve ter sido na mesma época em que se convencionou dizer que “somos todos iguais”. Não somos todos iguais (e ainda bem!). Porém, todos temos os mesmos direitos civis, o que é algo completamente diverso. Mas isso é motivo para outra crónica.

Na Grécia Antiga, havia apenas uma palavra para denominar os conceitos de “homem” e de “coragem”: Andrea. Bons tempos, esses, em que homem e coragem eram sinónimos! Estamos hoje pelas ruas da amargura nesse respeito. Claro que, quando o digo, refiro-me a uma perspectiva mais humanista, ou seja, os seres humanos de hoje não primam pela coragem. De notar, todavia, que os gregos quando utilizavam a palavra “homem”, isto é, Andrea, estavam mesmo a falar só de quem tinha órgãos sexuais primários Y, porque não lhes tinha chegado ainda a onda pós-moderna em que é politicamente incorrecto atribuir géneros. Havia, pois, a noção de que o homem era, por definição intrínseca, um ser corajoso. Dito de outra forma, na Grécia Antiga, a masculinidade era inseparável da coragem. Havia mulheres corajosas? Certamente, sem discussão! A maior parte dos mitos gregos o comprovam. Mas o ponto é que, a raiz grega da palavra “Andr-“ continha o conceito de masculino e simultaneamente de corajoso (vejam “Andrómaca”, a personagem feminina de Tróia: “Eu sou a que luta como um homem, eu sou a coragem do meu nome”). A virtude masculina por excelência podia ser extensível a mulheres. O que não podia deixar de acontecer era existir coragem na essência do homem para que ele fosse homem.

Já na Roma Antiga, a coragem fazia parte da Virtus. Note-se que a raiz latina “Vir-“ também significa “homem” (ainda hoje, falamos de “virilidade”, por exemplo). A Virtus romana era um pouco mais complexa do que a Andrea grega, porque – como em tudo o resto – os romanos pegaram nos conceitos gregos, amassaram, expandiram e apresentaram o mesmo sob roupagem mais pensada. O grego é muito intuitivo e visceral; o romano é sempre mais cogitado e prudente. Nem de propósito, a Virtus compunha-se de quatro coisas: a já falada coragem, a mencionada prudência, e ainda a justiça e a temperança (equilíbrio, controlo do ser). Mas continuamos na mesma senda: o homem não era homem se não fosse corajoso. Pelo menos, não era um homem digno de ser assim chamado.

Há poucos dias, os meus alunos mostraram-me o original de um filme em mandarim do qual eu só conhecia a versão inglesa. Era “Mulan”, dispensa apresentações. O caso é que, na cena em inglês em que a princesa chinesa Mulan finge ser um guerreiro, a versão inglesa diz “I will make a man out of you!” (Farei de ti um homem!). Mas a versão em mandarim é clara… Não é isso que se pretende. A versão em mandarim diz: “Yiao cheng wei nan zhi wan bu ren shu” (Torna-te um homem viril, não admitas uma derrota) “Nan zhi wan” não é apenas um homem; é um homem corajoso, um “homem que se porta como um homem”. A jovem Mulan podia portar-se assim? Podia e fez. A coragem é extensiva a todos os que a têm dentro de si. Assim a possuam!