Nota: No fim de 2022, faleceu o meu grande e sempre presente amigo, companheiro para todo o momento. O impacto foi profundíssimo. Deixo aqui o que escrevi e que foi lido na sua partida, pois ele era sempre o primeiro a ler as minhas escrevinhações. Embora o fim tenha sido íntimo, claro, acho justo que em 2025, já possa deixar aqui o testemunho público. Quaisquer palavras são poucas, quem recorda o Fernando sabe e sente.
Conheci o Fernando Ampudia há dez anos
atrás, quando cheguei à Universidade Europeia e a Lisboa. Lembro-me do momento
em que o conheci. Estávamos sós na Capela e eu, que tinha vindo de outro mundo
completamente diferente, fiz-lhe uma pergunta burocrática à qual ele respondeu
de maneira muito solene. Porém, estava a sorrir. Achei confuso. Disse-lhe: “Não
sou daqui. Não sei se estás a ser filosófico ou irónico.” Ele perdeu logo a
postura respondendo: “Quanta transparência!”
Tornámo-nos grandes amigos rapidamente.
Diria mesmo inseparáveis, tanto e até quando isso foi possível. Aqueles que são
desses longínquos anos da Europeia devem lembrar-se de nos ver, a conversar e a
gesticular, sempre que não tínhamos aulas.
Tratavamo-nos sempre pelo último nome.
“Onde se almoça hoje, Cook?” “Pode ser no bar, Ampudia”. Isto acentuava uma
ideia de camaradagem mais fraternal e até masculina entre nós, uma “amizade de
gajos com cabeça”, como ele dizia. Não que ele pensasse que eu era alguém
masculinizada, mas sim porque nunca houve qualquer margem de dúvidas que a
nossa amizade profunda não tinha qualquer tom ou mescla de outro sentimento. Isto
foi muito importante para mim, pois anteriormente eu tinha vivido uma realidade
difícil, onde o cérebro era irrelevante nas minhas relações.
O Fernando Ampudia era um ser humano
extremamente inteligente. Muitas pessoas podem atestá-lo, do ponto de vista
académico e intelectual. Porém, ele era tanto ou mais inteligente do ponto de
vista emocional. Tinha capacidade de intuição sobre as pessoas e mais ainda de
como agir com elas, com o cuidado necessário à sensibilidade de cada um. Era
incrivelmente generoso, com um grande coração, pronto a ajudar sempre que
possível. Lealdade, para ele, era uma palavra de ordem.
Custa dizê-lo agora que a vida se lhe
esgotou, mas o Fernando era muito apaixonado por tudo. Encantado com aquilo que
o mundo oferece, desde a comida (sobretudo o presunto, o famoso jambón ibérico!)
ao futebol do Real Madrid, desde a guitarra que tocava, à discussão sociológica
que nunca acabava. A família estava acima de tudo, porque, na essência, o
Fernando Ampudia era muito devotado aos filhos e era também um daqueles raros
espécimes que achava que o casamento é uma instituição sagrada e para toda a
vida.
Era um realista na sua aproximação à
vida. Os seus conselhos eram práticos. Mas polvilhava tudo com um sentido de
humor muito aguçado, que fazia parte do seu carisma inconfundível.
Frequentemente me apresentava às pessoas como “o íman do azar”. Dizia que dava
jeito ser meu amigo, porque eu era uma concentradora de azar pelo que, por
definição, os meus amigos tinham sorte. Isto mesmo me disse quando fui obrigada
a partir, aligeirando a tragédia da partida com humor: “Lá fico sem o íman do
azar por perto!...”
O Fernando Ampudia não era de alardes,
tão pouco era de vitimismos. Quando soube do seu problema de saúde,
escreveu-me: “Cook, vou ser directo: tenho um cancro.” E explicou que ia tratar
disso, e como. Mandei-lhe a palavra “RESISTÊNCIA!” Só falámos até ao momento em
que tudo parecia correr bem. Era difícil dizer mais do que a convicção de que
ia tudo arranjar-se. Na verdade, nunca acreditei que a Vida nos ia retirar o
Fernando. Seria uma injustiça. Foi uma injustiça. Nunca pensei que ele ia
falecer, porque me recusava a acreditar nisso. Ainda hoje, enquanto escrevo por
entre lágrimas, tenho dificuldade em perceber que ele já não está aqui.
O Fernando Ampudia não acreditava na
vida para além da morte. Nem em Deus ou na espiritualidade. Como já disse, era
um homem prático e de aproximação material à vida. Acredito que, até por isso,
lhe deve ter sido bem mais penoso despedir-se do mundo, sabendo que tudo ia
terminar.
Não posso imaginar o sofrimento dos
filhos, da mulher, dos pais, do irmão. Nós perdemos um Amigo, no meu caso o
grande Amigo, e isso é irreparável. Mas para uma família fraterna, o buraco que
fica não tem nome. Que encontrem força na memória e a paz possível é o que mais
desejo.
Estou grata por ter conhecido o Fernando
Ampudia nesta viagem. É uma enorme injustiça que ele tenha sido levado desta
Terra tão cedo. Mas eu tive com ele grandes aprendizagens, quando não pelas
suas palavras, pelo seu exemplo de vida: um homem vertical, generoso, leal, bem
humorado, apreciador, discreto, prático, pensante, fiel aos seus princípios e
às suas pessoas. Hasta siempre, Ampudia, hasta que nos volvamos a ver!
Carla Cook