... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, February 16, 2006

A Fúria do Dia dos Namorados


Deve haver poucas coisas mais enervantes e meladas do que o Dia dos Namorados para alguém que está sozinho. Eu, quando era miúda (pausa para aqueles que me conhecem se rirem porque só tenho 1,60 m e peso a condizer) nunca se ouvia falar neste dia. Depois, os profes de inglês começaram a envenar-nos na escola com o Valentine’s Day e outras tolices anglo-saxónicas, como se S. Valentim fosse inglês! Mais tarde, vim a descobrir que era um  romano que desafiou um Imperador cuja lei ditava que os soldados fossem todos solteirinhos (e não tivessem amantes) para melhor desempenharem as suas funções. Enfim, não nos alarguemos. O certo é que, subitamente, deu-se uma avalanche comercial e não passou a haver ano em que não florescessem coraçõezinhos, florzinhas, cupidozinhos, bombonzinhos, peluchezinhos, cartõezinhos e iloveyouzinhos em todas as montras. E nós, paspalhos consumistas, lá vamos.


Uma pessoa sem par sofre imenso neste dia. Uma pessoa com par também.


O “sem par” não consegue fugir. De todo o lado saltam coisas cor de rosa. O mundo inteiro, que ainda ontem se odiava, hoje é vermelho de paixão. Uma pessoa sente-se até infeliz! Sempre conviveu tão bem com a sua solidão voluntária, e, de repente, neste dia malfadado, sente-se culpado por não ter uma boca a quem dar um beijo obrigatório. Se vai comprar o jornal, é logo atacado com a pergunta:“Então, não quer levar uma prendinha para aquela pessoa especial?”; “Não, eu sou ímpar.” É logo olhado com estranheza, talvez até piedade. Ímpar a 14 de Fevereiro é quase doença terminal. Na rua, os casalinhos são como cogumelos: aparecem às centenas! Onde andava esta gente escondida nos outros 364 dias do ano?! Se vamos aos restaurantes, querem acender-nos velinhas! Velinhas, santo Deus! Para alumiar a nossa miséria, certamente. E a rosa vermelha na jarra em frente, e a musiqueta que perguntam se queremos ouvir. E o desconto era só para casais! Vamos, então, ao cinema para fugir de toda essa casta conspiradora. Piorou. Somos os únicos que foram ali ver o filme. O resto são parzinhos que podiam ter ficado em casa –qual é a graça de tanto apalpanço em público? Ainda não percebi, mas também compreendo que quando não se tem casa nem carro, uma pessoa tem de dar largas à imaginação toponímica – e mal vão as luzes abaixo, temos dois filmes à escolha. Uma pessoa acaba o 14 de Fevereiro com vontade de atirar setas ao Cupido.


E o ser “com par”? Não pensem que está melhor. O “com par” sofre da obrigação social de comprar uma prenda. É tradição. Definitivamente, começou há coisa de 10 anos. Está profundamente enraízada na nossa cultura, como se pode verificar. Se se esquecem as prendas, há verdadeiras catástrofes no seio de certos casais: “O quê?! O Miguel não te ofereceu nada?! O Filipe ofereceu-me flores, 5 rosas! Ah, eu, se fosse a ti, mostrava-lhe como é! Ai, eu castigava-o bem!” Ora, todo o homem sabe como uma mulher insatisfeita é mestra em perfídias.


 Por outro lado, as prendas nunca são do agrado de quem as recebe, a julgar pelos comentários pós-prenda com os/as amigos/as: “Pá, não gostei nada dos boxers com diabinhos que a Maria me ofereceu. Nem sei se ela espera que os use? Achas que espera?”, diz o Manel com uns boxers na mão que envergonhariam o avô dele, que são para ele do maior desconforto, e que a Maria está convencida que ele adora (porque a dona da loja disse que todos os homens adoram, que o marido e o filho dela – que nunca os vestiriam- adoram) . O Manel só os há-de usar, se achar que isso convence mais depressa a Maria a tirá-los – isto, se por acaso, ainda estiverem na fase em que precisam de estar com esta jogatana toda...


E eu, que sou firmemente contra datas que nos fazem gastar dinheiro à toa, que sou ainda mais obtusamente contra dias para demonstrar o nosso carinho por alguém, que sempre achei uma denguice melada e espalhafatosa este dia, que não preciso que me ofereçam presentes, antes quero abraços, obrigada, guarda lá isso, esquece essa treta, a quem irritam as beijoquices excessivas, e que fico, sobretudo, irritada, com o aproveitamento comercial que se faz de tudo... até eu, confesso, culpada, que me lembro ainda de um cartão piroso  que me deram neste dia, na escola, há imensos anos atrás.   


Wednesday, February 1, 2006

250 anos de mistério – Mozart

É ridículo escrever sobre música. Podemos escrever sobre quase tudo, mas escrever sobre música é como escrever sobre cheiros ou sobre sensações tactéis. Parece-nos uma troca de sentidos inútil, porque as palavras nunca poderão, por mais transportadoras, transmitir o que transmitem os sons. Que desperdício estou eu aqui a fazer? Posso, porém, escrever sobre um músico, especialmente se hoje (27 de Janeiro) se celebram 250 anos do seu nascimento e se esse mesmo homem e esse mesmo músico – porque entre um homem e o artista que ele é ou foi há geralmente uma diferença abissal – continua a ser um mistério muito atraente para a Humanidade.


Quando, na década de 80, surgiu o filme Amadeus, o mundo pensou que tinha achado uma resposta confortável para o mistério de Mozart. Deu-se uma popularização - passou-se a falar de Mozart em todos os lugares, fora dos círculos operáticos e sinfónicos, fez-se uma música pop com o seu nome que teve um sucesso estrondoso. O filme de Milos Forman – e a peça de Peter Scheffer, que esteve em cena em muitos países – mostravam um Mozart genial...e também infantil, caprichoso, sem respeito pelas leis, com um gosto excessivo pela materialidade, sexualmente irreverente ou mesmo invulgar (se é possível atribuir julgamento), encantado por tudo o que fosse novo e brilhante e facilmente desencantado com a mesma facilidade, cheio de pequenos artifícios para fugir às suas obrigações. Um homem (ou um rapazinho crescido?) com quem provavelmente não simpatizariamos muito, e por quem todos, sem excepção, mesmo os seus rivais, se quedavam fascinados, quando ele mostrava as suas criações, que pareciam fluir dele, como de uma torrente fácil e inesgotável. Simples e encantadora. Um jogo de crianças. Um riso.


No entanto, poucos anos depois, já fomos inundados com variadíssimos estudos sobre Mozart – biografias reactualizadas, ensaios, a nova edição do catálogo Köchel (que cataloga as obras de Mozart, ainda que tenha sido, como hoje sabemos, fundado sobre premissas erradas), fundações Mozart, e mil e uma parafernálias... Fá-lo-iam rir ou orgulhar-se?


O certo é que a maior parte destas novas ideias sobre Mozart tendem a desfazer um pouco o mito de menino leviano criado anteriormente. Focalizam-se nas figuras do pai – na sua intensa disciplina, que Mozart respeitava e a quem obedecia... e no modo como, subtilmente, se desviou deste, criando a sua autonomia firme, e dando-lhe mil e uma razões para as suas escolhas, sem, porém,  admitir contrariedade; também na figura de Constanze Weber, essa mulher anónima, que Mozart descreveu como a Cinderela dos Weber e que, em toda a História, sempre foi tida como a calculista que soube enganar o rapazinho genial. Tudo parece indicar, afinal, que Constanze, tal como a mãe de Mozart com o seu pai (e aqui tínhamos pano para muitas camisas, porque é certo, talvez, que cada qual procura o berço que deixou) soube ser a sombra que se adapta a esse marido tão ofuscadoramente brilhante. Uma sombra tão necessária que Mozart parecia necessitar dela como da luz vital. Já quanto ao “rival” Salieri – expressão estranha, hoje, por nos parecer, ouvindo as composições de um e de outro, que não poderiam ser rivais - , o mito da sua conspiração contra Mozart já caíu ... em duas décadas.


Em boa verdade, muitos mitos já caíram. O seu Requiem final não foi feito de modo tão misterioso como se disse, mas por uma encomenda de um viúvo, perfeitamente identificado; uma infeliz coincidência. A Cosí Fan Tutte era um recadinho à irmã de Constanze, por quem Mozart teve uma paixão prévia, antes do amor pela Cinderela dos Weber.


 Mas o mito maior, o único verdadeiramente digno de ser assim chamado (tristemente, vivemos numa época em que é necessário destrinçar o Mito da coscuvilhice) esse, ainda prevalece. Podemos conjunturar o que quisermos sobre a vida e a personagem de Wolfgang Amadeus e encontrar mil explicações. Tudo é inútil. São apenas palavras. A verdade, essa nunca a saberemos. Mas a sua música, essa continua sempre viva, inexplicável, mágica, intensa e poderosa. Simples, também. Como o riso das crianças. O único mistério de Mozart em que vale a pena mergulhar.