... "And now for something completely different" Monty Python

Wednesday, February 1, 2006

250 anos de mistério – Mozart

É ridículo escrever sobre música. Podemos escrever sobre quase tudo, mas escrever sobre música é como escrever sobre cheiros ou sobre sensações tactéis. Parece-nos uma troca de sentidos inútil, porque as palavras nunca poderão, por mais transportadoras, transmitir o que transmitem os sons. Que desperdício estou eu aqui a fazer? Posso, porém, escrever sobre um músico, especialmente se hoje (27 de Janeiro) se celebram 250 anos do seu nascimento e se esse mesmo homem e esse mesmo músico – porque entre um homem e o artista que ele é ou foi há geralmente uma diferença abissal – continua a ser um mistério muito atraente para a Humanidade.


Quando, na década de 80, surgiu o filme Amadeus, o mundo pensou que tinha achado uma resposta confortável para o mistério de Mozart. Deu-se uma popularização - passou-se a falar de Mozart em todos os lugares, fora dos círculos operáticos e sinfónicos, fez-se uma música pop com o seu nome que teve um sucesso estrondoso. O filme de Milos Forman – e a peça de Peter Scheffer, que esteve em cena em muitos países – mostravam um Mozart genial...e também infantil, caprichoso, sem respeito pelas leis, com um gosto excessivo pela materialidade, sexualmente irreverente ou mesmo invulgar (se é possível atribuir julgamento), encantado por tudo o que fosse novo e brilhante e facilmente desencantado com a mesma facilidade, cheio de pequenos artifícios para fugir às suas obrigações. Um homem (ou um rapazinho crescido?) com quem provavelmente não simpatizariamos muito, e por quem todos, sem excepção, mesmo os seus rivais, se quedavam fascinados, quando ele mostrava as suas criações, que pareciam fluir dele, como de uma torrente fácil e inesgotável. Simples e encantadora. Um jogo de crianças. Um riso.


No entanto, poucos anos depois, já fomos inundados com variadíssimos estudos sobre Mozart – biografias reactualizadas, ensaios, a nova edição do catálogo Köchel (que cataloga as obras de Mozart, ainda que tenha sido, como hoje sabemos, fundado sobre premissas erradas), fundações Mozart, e mil e uma parafernálias... Fá-lo-iam rir ou orgulhar-se?


O certo é que a maior parte destas novas ideias sobre Mozart tendem a desfazer um pouco o mito de menino leviano criado anteriormente. Focalizam-se nas figuras do pai – na sua intensa disciplina, que Mozart respeitava e a quem obedecia... e no modo como, subtilmente, se desviou deste, criando a sua autonomia firme, e dando-lhe mil e uma razões para as suas escolhas, sem, porém,  admitir contrariedade; também na figura de Constanze Weber, essa mulher anónima, que Mozart descreveu como a Cinderela dos Weber e que, em toda a História, sempre foi tida como a calculista que soube enganar o rapazinho genial. Tudo parece indicar, afinal, que Constanze, tal como a mãe de Mozart com o seu pai (e aqui tínhamos pano para muitas camisas, porque é certo, talvez, que cada qual procura o berço que deixou) soube ser a sombra que se adapta a esse marido tão ofuscadoramente brilhante. Uma sombra tão necessária que Mozart parecia necessitar dela como da luz vital. Já quanto ao “rival” Salieri – expressão estranha, hoje, por nos parecer, ouvindo as composições de um e de outro, que não poderiam ser rivais - , o mito da sua conspiração contra Mozart já caíu ... em duas décadas.


Em boa verdade, muitos mitos já caíram. O seu Requiem final não foi feito de modo tão misterioso como se disse, mas por uma encomenda de um viúvo, perfeitamente identificado; uma infeliz coincidência. A Cosí Fan Tutte era um recadinho à irmã de Constanze, por quem Mozart teve uma paixão prévia, antes do amor pela Cinderela dos Weber.


 Mas o mito maior, o único verdadeiramente digno de ser assim chamado (tristemente, vivemos numa época em que é necessário destrinçar o Mito da coscuvilhice) esse, ainda prevalece. Podemos conjunturar o que quisermos sobre a vida e a personagem de Wolfgang Amadeus e encontrar mil explicações. Tudo é inútil. São apenas palavras. A verdade, essa nunca a saberemos. Mas a sua música, essa continua sempre viva, inexplicável, mágica, intensa e poderosa. Simples, também. Como o riso das crianças. O único mistério de Mozart em que vale a pena mergulhar.