... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, April 6, 2006

A Vida Sob Outro Prisma



Nós, os que nascemos perfeitinhos (os que me conhecem estão a rir-se às fortes gargalhadas!) nunca pensamos como será ter uma deficiência, mais ou menos incapacitante. Incapacitante sobretudo porque o mundo onde vivemos não está estruturado para responder às necessidades de quem não tem a absoluta posse de todas as suas capacidades físicas ou mentais, nem a sociedade (palavra que geralmente usamos para nos referir a um mar de gente do qual nos excluímos elegantemente, sempre que nos é conveniente, mas na qual estamos incluídos de modo fatal) vê com olhos despidos de preconceitos os deficientes, os velhinhos esclerosados, os loucos – e agora, vejam lá, não façam a tolice de pensar que meto esta gente toda no mesmo pacote, como se fossem rebuçados de fruta.


Já sei que estou a usar uma data de palavras neste texto que ninguém gosta de mencionar... Já há alguns anos que vem sendo hábito não se chamarem as coisas pelos nomes (e só isto dava uma crónica completamente diferente que fica para a próxima) por um medo extraordinário das palavras. Quase tanto como o medo de olhar para as pessoas de frente que muita gente tem.


Há algumas deficências com que me deparei mais ou menos tarde na vida.


Só pensei como seria ser surdo – é quase indesculpável que me tenha ocorrido tão tarde - quando tive uma aluna surda. Nessa altura, dei-me conta de que era preciso articular muito bem as palavras (ela sabia ler nos lábios) e nunca falar quando estava de costas ou de lado, mas sempre olhando bem de frente para a minha turma. Para a minha turma, porque ela era parte da turma, não era uma alienígena que estava ali com a qual eu me tinha de me comportar como se ela fosse de Marte. Ocasionalmente, convinha repetir as coisas, sobretudo se a via franzir o nariz e os olhos, sinal de que estava com dificuldades. Era uma aula muito bem-disposta, como todas, mas foi uma aula para a qual nunca levei música porque confesso que não sei como ela iria reagir. Claro, talvez pudesse sentir as vibrações mas achei que era insistir numa diferença entre ela e os outros alunos, puxar por uma corda provavelmente sensível.


Igualmente, nunca pensei muito na cegueira. Havia um colega cego numa das escolas onde andei. Escrevia numa máquina especial, demorava mais tempo a andar pelas escadas com a bengala, tinha livros com sinais esquisitos – Braille, obviamente, mas quem se preocupava com detalhes desses na pré-adolescência? Fora isso, era um rapaz normal e entrava em muitas actividades. Às vezes, dizíamos disparates à sua frente. Coisas de miúdos que não pensam, como: “A Ana está ali, não vês?” Ele ria-se e dizia: “Por acaso, não vejo!”  ou “Dá-me a caneta vermelha”, sendo que lhe seria impossível distinguir a vermelha da azul, como é evidente. Mas tudo era feito entre risos e nunca houve uma ocasião de atrito ou de má-fé de que me lembre.


Podia continuar a enumerar situações. Isto a propósito de um artigo que li, em que uma escritora (Nancy Mairs), que sofre de esclerose múltipla, conta como vê o seu corpo degradar-se pouco a pouco. Vai perdendo as suas capacidades físicas num processo terrivelmente rápido; é ainda jovem mas o seu corpo está a tornar-se o de uma velhinha incapacitada. Diz ela que, ainda há poucas semanas, era uma mulher de saltos altos que dava conferências. Agora, anda de cadeira de rodas (e ainda bem que estas existem, caso contrário a sua locomoção era impossível) e a primeira coisa que vê do mundo, quando está numa multidão, são rabos. Juro que, depois de ler isto, passei a ter mais cuidado com os jeans que enfio.


Há uma passagem em que ela fala da sua sexualidade. Eis uma coisa da qual ninguém fala: a sexualidade de alguém que, por um motivo ou outro, está numa cadeira de rodas, é anão ou tem sete dedos numa mão e uma giga nas costas. Como ela diz: “Não é suposto os aleijados quererem sexo, muito menos fazê-lo.” São obrigados a uma castidade que não escolheram e que é, na maior parte destas situações, contra-natura. Estas pessoas não têm as hormonas em declínio. Nem sequer estão na menopausa/andropausa. Têm um corpo um bocadinho diferente e é tudo. 


Á conta disto, dei por mim a pensar nos variadíssimos adolescentes e adultos que há à minha volta de cadeira de rodas. Ou outra incapacidade física qualquer. Será que são inevitavelmente postos de parte do ponto de vista amoroso e sexual à conta disso? Se calhar, a maior parte das vezes são. Será que mais de metade disso não é mesmo preconceito nosso? Se calhar, é. Pois é.