... "And now for something completely different" Monty Python

Sunday, October 15, 2006

«Demasiadas Notas, Meu Caro Mozart!»

«Outubro é o mês da música.» É isto que vemos propagandeado e não se percebe muito bem porquê – afinal, quem gosta, gosta sempre (tenho a impressão de já ter ouvido esta frase em qualquer lado…afinal, o marketing funciona!); quem não aprecia dificilmente se deixará contagiar por se ter institucionalizado o dia 1 de Outubro como o Dia Internacional da Música.


«2006 é o ano Mozart.»  Outra frase repetida até à exaustão e igualmente sem sentido porque de Mozart são todos os anos desde 1756. Já em 1991 tínhamos assistido a uma febre universal mozartiana, quando se celebraram (o verbo é extraordinário quando aplicado a esta situação) duzentos anos da sua morte. Escreveram-se milhares de ensaios, artigos, biografias, restauraram-se quadros, repensou-se a catalogação Köchel (com o devido respeito que inspira sempre a toda a gente a revisão feita por Einstein), reviu-se a peça de Peter Schaeffer e o filme de Milos Forman centenas de vezes e, acima de tudo, discutiu-se muito a vida de Mozart nos círculos ditos eruditos;  não sei até se mais do que se ouviu a sua música – afinal, único momento onde reside o magnetismo inexplicável e a intemporalidade que todos se esforçavam por descobrir em mil e um lugares secretos estranhos aos sons. 


Desde o fim de 2005 - os 250 anos do nascimento de Mozart celebraram-se a 27 de Janeiro deste ano e a «máquina» não perde tempo! - que vimos assistindo a uma agitação em tudo igual. Nada mudou. Salzburg e Viena continuam a disputar o wunderkind e recebem peregrinações turísticas - embora todos já saibamos, há muitos anos, que Mozart nunca gostou da sua terra-natal - , os biográfos ainda discutem a influência na sua vida da disciplina e visão do pai Leopold, do carácter (amoroso ou cínico?... mas seguramente adaptável e camaleónico) da mulher Constanze Weber e da sua  (agora  admitida como muitíssimo  exagerada) rivalidade com Salieri. Um pouco por todo o mundo, não têm conta os concertos que se realizaram para celebrar o aniversário de Mozart este ano, e ainda continuam a realizar-se, havendo mesmo quem tenha tido a iluminação intelectual de encomendar o Requiem para a quadra natalícia, demonstrando esta escolha uma apurada sensibilidade musical a par de um  elevadíssimo conhecimento terminológico (e prático, pois imagino o desconforto que se apoderará das pessoas na igreja quando sentirem o peso e a melancolia de uma Missa de Defuntos na época cristamente alegre de aniversário do Menino Jesus. Adiante.)


Escrever sobre música é ridículo e pedante. Ridículo porque se as palavras pudessem transmitir o que transmitem os sons, não haveria músicos mas apenas escritores. Teríamos um mundo insuportavelmente mais pobre. Pedante porque a tendência geral quando se escreve ou até se fala sobre música e não se pertence a esse mundo tecnicamente (com raríssimas excepções, como Aldous Huxley que, sendo doutra esfera, aparentava uma naturalidade invejável) é meter a música em ficheiros bibliográficos  que se leram e arrumá-la  em teorias formativo-sistemáticas que se aprenderam há anos atrás, donde resultam conversas melómanas onde entram construções poéticas como «mistério ambivalente» a par de palavrões como «dodecafonia». Banalidades que não acrescentam nada à música enquanto fenómeno transportador.


Hoje, já elucidados pelos historiadores quanto a alguns mistérios mozartianos (as paixões juvenis pela prima e pela irmã da mulher, as viagens e as enormes dificuldades profissionais e financeiras, a ligação ambígua ao pai, as suas crenças, a sua doença súbita que nada teve de misterioso como por tanto tempo se acreditou), não somos capazes de discernir o mais recôndito – a razão do apelo da sua música. A música de Mozart é, mesmo para os animais ditos irracionais, a mais chamativa, a mais vivificante e, paradoxalmente, a mais tranquilizadora, segundo os etólogos.


Podemos agarrar-nos a conceitos como o domínio técnico infalível da forma e da «simetria» (a palavra mais usada quando se fala em Mozart, depois das palavras «divino» e «humano», o que nos faz pensar que ele é a ponte de equilíbrio entre dois mundos opostos) das suas sinfonias, a incomparável «percepção humana» (ops!) das suas óperas, o fascínio e brilhantismo dos seus concertos, a maravilhosa duplicidade – a um tempo alegre e nostálgica – das suas sonatas, etc, etc… Nada disso interessa. É absolutamente irrelevante tentar explicar o prazer.


De resto, nem sempre ele foi unânime, pelo menos entre os pseudo-avaliadores (essas pessoas sempre tão gloriosamente importantes na sua época e depois tão imediatamente esquecidas dias após a sua morte). O Sacro-Imperador José II ao ouvir a ópera O Rapto do Serralho - hoje aclamada como deliciosamente imaginativa - bocejou :«Demasiadas notas, meu caro Mozart!».


Afortunadamente, Mozart não prestava muita atenção aos seus mecenas ou a quem quer que fosse. A sua consciência musical era apenas a de que a música era. Sem necessidade de explicações ou consequências. E, nele, a música era um rio inesgotável  porque, tal como o sangue e a linfa que foram a sua curta vida, a música era Mozart.



Friday, October 6, 2006

Mudam-se os Tempos...


Em conversa com alguns miúdos (enfim, não tanto como isso, já são maiores de idade e têm mais 20 cm de altura do que eu,  mas, dado que 10 anos nos separam, a tendência é para os «miudizar» - sou capaz de ter inventado o verbo agora mesmo, atenção dicionário Houaiss!), descobri que a minha antiga escola secundária, hoje mais conhecida por uma sigla qualquer que me recuso a repetir por achar ridículo vivermos num mundo de siglas, proibíu que se dêem beijos na boca dentro do recinto escolar.


Serei só eu a única adulta, sã em mente e corpo (pelo menos ainda não fui internada por nenhuma mazela respeitante a estes) a achar esta medida absolutamente estapafúrdia?


A coisa torna-se ainda mais engraçada se pensarmos que a proibição é ideia de um grupo de pessoas que, quando eram jovens (basta fazermos as continhas à idade que têm…), seriam certamente todas muito arejadas e algumas até auto-denominadas hippies – vá lá, à escala do arquipélago, onda a onda hippie chegou muito mais tarde e foi sempre bem mais soft . De qualquer modo, quando andavam no liceu, estes senhores e senhoras – hoje tão predispostos a ver num beijo um pecado! - estavam  dentro da onda  da liberdade e do flower power. Todos sabemos que a máxima vigente da época destes senhores era MAKE LOVE NOT WAR e com isto está tudo dito. Resta saber se o make love era tão directo que se ia lá sem beijos nem nada. Espero, sinceramente, que não.  Estes senhores e senhoras ainda falam dos namoros e atrelamentos que tinham «no liceu» (e não «naquele tempo», note-se o pormenor semântico), mas agora querem convencer a malta que namorar dentro da escola «não se deve fazer», seguindo as boas regras de Frei Tomás, faz o que ele diz e não o que ele faz.


Entretanto, estes senhores cortaram os cabelos, fizeram as barbas, as senhoras subiram cada vez mais os saltos dos sapatos e puseram maquilhagem, eles e elas empinocaram-se nas roupas (não esquecer as fundamentais gravatas para eles) e começaram a ficar muito cansados. O cansaço crescia à medida que passavam mais tempo sentados em confortáveis cadeiras, normalmente conhecidas por «cadeiras executivas». São cadeiras que se vendem no hiper, mas só dão estatuto quando se pode fazer leis (umas a torto, outras a direito) ou mandar em meia dúzia de gente (nem que seja na comissão de moradores do prédio) sentado nelas. Depois, o cansaço engorda, o pessoal deprime-se e para chatear aqueles com ar juvenil e bem-disposto é caçá-los – cortar-lhes isso da beijoquice, por exemplo. Que pouca vergonha é essa agora ? Eles, no seu tempo (perguntem-lhes)  não beijavam ninguém  na escola!


Decerto haverá pais preocupados e professores iluminados que defendam que os namoros dos filhos/alunos dentro do recinto escolar lhes desviam a atenção das disciplinas a serem estudadas. Ah ah ah ! E outra vez : AH AH AH ! É mais ou menos como dizer que as batatas fritas estão no prato para tirar o lugar ao bife. As indecentes. A partir de hoje, devíamos comer só bifinho. Sem salada, sem batatas, sem arroz, sem molho. Seco e duro. Toma lá. Até o saboreias melhor.


A escola é onde um adolescente passa mais tempo. Não é unicamente o lugar onde vai aprender Português, Matemática, Biologia, Inglês, Desporto (embora também seja isso, o que já não é nada dizer nada pouco!). É também  o lugar onde aprende a viver em sociedade, porque o microcosmos familiar é uma célula demasiado pequena  (e quantas vezes deficiente ou até inexistente) para que ele possa apreender as ligações inter-pessoais que, de qualquer modo, são demasiado ricas e vastas  para se realizarem em pleno (só) aí. O amor faz parte da vida, e quando não faz é de lamentar. Parece-me muito perigoso incutir esta noção como regra – a de que uma manifestação de amor  (porque um beijo é tão só isso e não o tabu que querem fazer dele) está proibida.


Bem sei que muitos pais (e certos professores, meus caros colegas) abanam a cabeça a dizer que os meninos que querem namorar podem ir para casa fazê-lo. Do ponto de vista de um pai preocupado com a sua filha (porque é disso que se trata) não me parece muito inteligente. Qualquer casa oferece muitos mais perigos, com tanto chão para rebolar, sofás e camas fofinhas e (sobretudo) portas que se podem trancar.  Quem diz casa, diz outro local com chave. A imaginação de alguém a quem uma proibição foi imposta é quase ilimitada. Como sabemos, proibir é incentivar a vontade de um coração rebelde. Então, um apaixonado trepa paredes lisas.  


Se for rigorosa na sua proibição do beijo, a escola dentro em pouco levará à sua própria desertificação, excepto nos momentos absolutamente necessários para a prática do desporto e para a assistência de aulas. Isto porque ninguém prevê quando é que um beijo pode acontecer, certo?


Caros pais e colegas, a vossa preocupação é um pouco excessiva. Afinal, que a ciência tenha conhecimento, ainda não se engravida pela língua…