Qual é a grande característica da arte em Portugal nestes dias que vivemos? É ter a mão estendida. Não há artista, por pouco talento real que tenha que não haja aprendido este gesto de esticar o antebraço mais o braço e abrir a mão – e a boquinha -, proclamando que não estreia a sua produção / publica a sua obra (não raro “prima”) / sai da cepa torta porque não tem o apoio do Estado ou de um privado. Oh, quanto talento tragicamente escondido e perfidamente abafado temos entre nós pela malvada avareza governativa. Dói-me ver estes Fernandos, múltiplas Pessoas, estas Florbelas espancando-se, febris, estes Rodins partindo pedra inglória, estas Margot Fonteyn sem pontas pedinchando à beira das instituições e não raro dentro das próprias.
Até há pouco tempo, algumas artes estavam livres da esmola subsidiária. Quero dizer, dava-se dinheiro aos cineastas, por exemplo, para fazerem aqueles filmes espectaculares na lentidão e na diégese que ninguém percebia, excepto os próprios realizadores (se bem que tenho muita desconfiança acerca da relevância dos planos totalmente a branco e totalmente a negro e, sobretudo, do custo dos mesmos…); davam-se uns trocos aos compositores para algumas obras encomendadas, geralmente muito pouco melódicas e pobremente harmónicas, cuja função era a celebração de um evento nacionalista. Mas os escritores, por exemplo, sempre eram poupadinhos ao mecenato.
Hoje em dia, qualquer tipo que escreva umas balelas não só se considera escritor como se acha com talento suficiente para publicar – fora do blog que, certamente, já criou! – e ainda acha que para publicar merece que lho paguem. O pseudo-escritor português e/ou residente em Portugal (tomado como exemplo do pseudo-artista) tem uma árdua vida: escreve muito, mas são sobretudo cartas (de bajulação, de pedido, de amizade “pessoal” como se outro tipo de amizade houvesse…, de intervenção na vida da sua comunidade como crítico, de ódio a outros escritores mas na base da crítica puríssima e não raro “pessoalmente amiga” às obras destes), ou convites porque almoça e janta com quem é devido almoçar e jantar, ou ofícios porque concorre a todo o subsídio e concurso ao qual pode concorrer – é um especialista da chamada “maminha”.
Quando, finalmente, consegue alguma coisa, agradece? Nem por isso. O pseudo-artista é um “cospe na sopa” por natureza. Gosta de se lamentar que é um incompreendido, que caso lhe tivessem dado o devido valor a tempo ou caso ele vivesse noutro país (porque raio não emigram alguns é um mistério para mim…), poderia ser um Saramago ou mais ainda.
Bom, ainda bem que há anos atrás os nossos escritores não se deixaram deter por problemas destes! Imagine-se o que era Fernando Pessoa batendo o pé na casa de comércio onde trabalhava escrevinhando correspondência e dizendo: “Vocês nem sequer me dão condições salariais para acabar de produzir a Mensagem! Vão arrepender-se, cambada de vermes, pois eu serei lembrado pelo Harold Bloom n’O Canône Literário! You know not what tomorrow will bring! O futuro é meu! Ah ah ah!”
Sejamos pragmáticos: é impossível patrocinar tanta arte de bolso. Por mais rico que fosse um Estado ou uma entidade, não podia ser nunca a Nssa Sra do Abono das Artes. Até porque a maior parte destes senhores podia aproveitar melhor o tempo na produção artística original do que na caça de beneficência. Todo o artista, e, para ser coerente, todo o escritor que sinta sê-lo, há-de sê-lo sempre, não importa em que situação se veja. Nunca se ouviu falar de um escritor que tenha deixado de escrever por ficar sem meios. Os meios interessam muito pouco e a própria publicação é totalmente uma ideia secundária para quem escreve por impulso interno, por febre ou por talento. A publicação aparecerá, cedo ou tarde e que importa esse quando?
Quanto aos incentivos do Estado, são muito mais vantajosos quando aplicados na outra face da moeda, isto é: não falta gente a publicar neste país, o que pode faltar, por comparação, é gente a ler o que se publica. Por falta de interesse, de conhecimento ou de dinheiro. Portanto, em vez de um apoio dado ao José que quer publicar o livro que escreveu para a Maria no aniversário de casamento deles e que consta de cinco poemas de três linhas cada um, é sempre mais útil um apoio que vise o estímulo ou o alcance de uma obra já disponível por parte das pessoas que não o podem fazer ou que querem aprender a fazê-lo. Porque se ajudarmos o público a lá chegar ou a entusiasmar-se por isso, também se abre a porta a todos os desgraçadinhos, coitadinhos cujos braços já doem de pedir dinheirinho… é que quanto mais público, mais artistas!