Há pouco, ouvi esta expressão que parece ser agora politicamente correcta: conceitos prévios. Quando os nossos interlocutores dizem que têm “alguns conceitos prévios sobre o assunto em questão”, podemos começar a puxar lustro à cadeira. É que, se desconstruirmos a frase para analisar o sentido, começamos a perceber que a retórica significa apenas “pré-conceitos”, ou, em bom português, “preconceitos”, aquela palavra proibida que não se pode usar em sociedade e que ninguém de bom tom pode admitir que tem.
Qual é a maneira mais segura de saber se alguém os tem? Geralmente, o preconceituoso tem pânico de chamar as coisas pelos nomes. Dá voltas ao dicionário para arranjar sinónimos e eufemismos que tornem a coisa mais soft. O preconceituoso esperto (aka hipócrita) consegue manter um diálogo sem que demos pelo circo – há até o que faz discursos contra os seus ideais, para obter a aprovação dos seus pares, porque, dada a sua insegurança, não suporta ser ímpar. É que dentro de cada preconceituoso mora um ser muito inseguro, sem firmeza de opinião. Um preconceituoso, naturalmente cheio de medo das diferenças, não fará nunca revoluções. Mas vai incessantemente, incansavelmente trabalhando na sombra, com o seu focinhito de toupeira.
O preconceituoso é a favor dos imigrantes em Portugal. Muito, até. “Eu? Eu não suportaria viver sem a minha empregada ucraniana, é a melhor que tive até hoje! E mais: a minha casa foi feita por um cabo-verdiano e digo-te que nunca vi obra tão perfeitinha!” A favor das mãos que toquem no que ele, indivíduo que a si mesmo se considera qualquer coisa muito especial, nunca tocaria.
O preconceituoso está pela igualdade. Ele tem amigos gay que gostam dele. Ter amigos homossexuais fica bem e dá um ar liberal, mas se o seu filho se atrevesse a ser uma coisa dessas não voltava a pôr os pés lá em casa, porque a casa de um homem de conceitos prévios não é casa de gente torta.
O preconceituoso adora crianças a quem dá beijinhos em público, mas seria incapaz de adoptar uma, porque genes incógnitos são capazes das mais hediondas coisas e não merecem a honra e louvor de serem educados debaixo da sua alçada. Os seus genes, sim. Ocasionalmente, até pode ser que lhes dê a papa. Mudar a fralda, isso não, que é trabalho inferior, coisa de criada.
O preconceituoso é a favor da distribuição das tarefas domésticas: ele pode muito bem contribuir e abrir a cerveja que a mulher lhe traz! Também concorda com uma igualitária distribuição de postos de trabalho: porque é que se há-de ter um jurista quando olhar para uma jurista de decote é sempre melhor? Aliás, “quantos mais decotes, perdão mulheres na empresa, melhor!”
Todos estes exemplos podem fazer sorrir, seja por troça, desprezo ou ironia. Mas, no fundo, estamos a rir-nos da nossa própria construção social. Explico melhor. Os senhores que têm conceitos prévios (vamos a ver se me habituo a esta nova nomenclatura…) usam-nos, afinal, por uma questão de adaptabilidade ao mundo que os rodeia. Quero com isto dizer que ninguém nasce com conceitos prévios; aprende-os. Essa aprendizagem é fruto de uma família, de uma escola, de toda uma sociedade que formou muitos homens incapazes de serem coerentes. Se por um lado, estão agarrados às suas ideias absolutamente fora dos ideais de fraternidade e igualdade, por outro estão muito cientes de que devem transparecer uma imagem a favor da liberdade e dos direitos humanos. Ou seja, e para utilizar uma metáfora ao alcance de todos, são criaturas com cabeça de Estado Novo tentando proclamar o 25 de Abril.
Um conceito prévio resulta sempre de uma frustração imposta por um elemento mais forte; incapaz de lidar com a sua frustração, o pré-conceituoso gere a agressividade para com um elemento mais fraco. O alvo do seu conceito prévio é um bode expiatório para aquilo que ele verdadeiramente sente: falta de poder, falha do leme da sua vida.
Peço desculpa de ter escrito o texto referindo-me ao masculino. Não é certo, claro. Afinal, todos os homens com conceitos prévios tiveram uma mãe que os educou a pensarem assim…
Friday, March 19, 2010
Friday, March 5, 2010
Música, maestrina!
Escrevo a 4 de Março, aniversário do nascimento de Vivaldi, que todos sabem quem foi por conta dos primeiros compassos do Allegro da Primavera d’As Quatro Estações.
Não vou falar dele. Primeiro, porque seria óbvio nesta data (atentos produtores de cultura estão afincadamente a afiar lápis e seriam duas notas sobre o mesmo tema); segundo, porque Vivaldi tinha como alcunha “o padre vermelho” e, dizia Schulz, é diplomata não recordar às mentes política ou religião (nem futebol, mas este não me consta que existisse em 1678).
Aqueles que apreciam música erudita, vulgo chamada clássica, recordam-se de alguma mulher compositora? Um nome… Nem um? Entre tanto homem famoso, não há nenhuma mulher, pois não? Custa a crer. Pois tenho novidades: uma enciclopédia de Aaron Cohen que registou 6.196 mulheres compositoras dentro do estilo. O problema é que nós olhamos para os nomes e ocorre-nos sempre outra razão pela qual as mulheres são mais famosas do pela música. Exemplo: “Oh, Anne Boleyn! Foi a segunda mulher do Henrique XVIII e reza a História de Inglaterra que ele mudou as leis e a religião do reino para ficar com ela mas afinal mandou-a matar no fim, esse louco… “ ou “Ah! Clara Wieck! Era mulher do Robert Schumman, ele sim um grande compositor e ela era a melhor intérprete das composições dele – é o que se chama uma união celestial… Porque será que Schumman se suicidou?”
Daqui se tiram tristes conclusões. Primeiro, as mulheres são sobretudo lembradas não pela sua obra mas por serem apêndices de alguém (mulheres, filhas ou mães, conforme o caso). Segundo, isto dá à mulher um papel muito subalterno, como se a(s) sua(s) maior(es) qualidade(s) fosse(m) aquela(s) que representa(m) dentro de quatro paredes: dona do lar, do fogão, da cama e de todo o bem-estar - livra, já não é dizer pouco, pensarão as mulheres que me lêem! Aliás, convém não esquecer a sabedoria dos grandes otomanos: “O Sultão governa o Reino e o harém, mas a sua companheira predilecta é a cabeça que move a sua mão.” Terceiro: a mulher anda sempre metida em confusões e tragédias que mudam o curso das nações, mesmo quando ela está sentada em casa, a tocar piano.
Apesar dos estudos sobre possíveis contribuições de mulheres para música muito venerada - como as suites para violoncelo de Bach que alguns dizem ter sido escritas pela sua segunda mulher, Anna Magdalena - , nunca nada se provou de concreto. De qualquer modo, há muito mais compositores do que compositoras e a razão é óbvia: o mundo está feito para que os homens avancem mais facilmente (espero que ninguém me vá punir com uma censura ou ofertar-me uma quota por esta frase à La Palisse ). Anna Magdalena, por exemplo, transcrevia toda a música que Bach fazia e ainda tratava de 14 crianças.
Recentemente, Portugal tem vibrado muito com o êxito internacional de uma sua maestrina. Nós antes só tínhamos (poucos) maestros a conseguirem algum renome fora de portas (António Vitorino d’Almeida, Álvaro Cassuto). Apareceu Joana Carneiro com 30 aninhos a ficar à frente da Sinfónica de Berkeley em 2009 e demos-lhe a Ordem do Infante. Mas quando vamos procurar informação sobre a dita, damos logo de caras com esta coisa irritante que há-de persegui-la até à morte, por mais sucesso que tenha: António Vitorino d’Almeida é ele próprio, Cassuto é ele mesmo e Joana Carneiro é… filha de Roberto Carneiro, antigo Ministro da Educação. Uma mulher não tem hipótese: por melhor que seja, arranjam-lhe logo uma biografia de sucesso atrelada.
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