Mesmo quem não gosta de Espanha tem vontade de ler um jornal como La Vanguardia, nem que seja pelo título provocador que aponta para o futuro. Foi neste jornal de Barcelona que o escritor português Gabriel Magalhães (de quem eu nunca li uma obra que fosse, apesar de saber que ele ganhou o Prémio Revelação da APE e de ter gostado das entrevistas dele) escreveu um artigo muito interessante sobre o modo de ser português. Agora que já vos confundi sobre a minha noção de geografia, misturando a Bastilha com Barcelona e com Portugal - dando vários argumentos àqueles que dizem que mais valia dedicar-me à cozinha do que aos estudos - vamos descodificar o assunto para que o texto não se torne perceptível apenas para esquizóides: Gabriel Magalhães fez o doutoramento em Espanha e essa vivência distante da sua terra natal permitiu-lhe ter uma visão mais objectiva e crítica das raízes. Diz ele que “em Portugal […] aquilo que é real é sempre um pouco nebuloso.” Concordo e acrescento que o nebuloso também se torna rapidamente real (basta atentarmos na quantidade de boatos que passam por ser verídicos à velocidade da luz; aliás, conheço mesmo quem tenha lançado boatos para que fossem admitidos como verdades). Quanto à realidade ser nebulosa, todos sabemos que é impossível confirmar o que quer que seja do que hoje se passa no nosso país; a própria justiça, se antes era apenas uma senhora cega por dever de equilibrar sem preconceitos os pratos da balança, é hoje cega e surda por não poder adquirir provas contundentes de absolutamente caso algum.
Magalhães tem também uma tese muito própria sobre a democratização de 1974: diz ele que o país se convenceu que “todos iam passar a ser aristocratas, ricos e importantes”. Ou seja, ao invés de entenderem a revolução como o poder do povo, entenderam-na como o povo ao poder, e quanto mais poder melhor. Assim, inconscientemente, deu-se em Portugal (como noutros países do sul da Europa) um “regresso a uma mentalidade senhorial de outros tempos” e entrou-se “no séc. XXI a pensar como se pensava no séc. XVII”. Nesse momento, já o Estado tinha criado a ideia de um país muito desenvolvido e eminentemente Europeu (embora não tivéssemos qualquer consciência europeia enquanto povo), um país repleto de executivos acabadinhos de fazer cujas mãos estavam ainda sujas da enxada mas que, tal como a nobreza doutros tempos imperiais de Portugal, “vivia à grande e trabalhava com muita moderação”. Esta casta dita superior, que ainda há pouco proclamava a igualdade em Abril, entende agora que os postulados da sua grandeza são inabaláveis. Logo, necessita de preservar a manutenção do seu bem-estar pelas vias mais fáceis: os que se rebelam passam a ter estatuto de sub-humanos (como os servos ou não-cidadãos de outros tempos), sendo-lhes reservados direitos mínimos. Além disso, é a estes sub-humanos que compete produzir porque a casta não produz; ela vai-se alimentando, “sem reacção e sem inovação […] amodorrada no leito da sua grandeza.” Outra das características desta nova nobreza é que, pura e simplesmente, não tem ideias novas; papagueia as antigas, morrendo de medo que alguém diga algo de inovador que os faça perder os privilégios adquiridos.
Magalhães explica o esbanjamento (pessoal e comunitário) e as dívidas de um Estado pelo “apogeu desta nova mentalidade senhorial”: “uma sociedade com uma visão burguesa já teria feito contas há muito tempo.” Mas os nobres, esses esbanjam… até à bancarrota que tantas vezes assombrou a nossa história. O problema de hoje em dia é que a democratização do nosso canto foi mal conseguida, ao ponto de todo o cidadão se julgar um nobre! “O cidadão relaciona-se com o Estado acumulando benefícios, subsídios, privilégios – exactamente como fazia a velha nobreza que enriquecia com as mercês dos reis absolutos.” E cada um tornou-se um fidalgote de trazer por casa, aborrecidinho, ditador e egoísta.
Magalhães defende que, ao invés de avançar, o país retrocedeu muito nas últimas décadas. Não por causa da economia, mas porque estamos “vãos, fúteis, decadentes”. E a solução é cada um “tomar de assalto a Bastilha de si mesmo e transformar-se noutra coisa. Voltarmos a ser, clara e humildemente, pessoas.”
Claro que esta saída para a crise de valores tem dois senãos: primeiro, ninguém quer admitir que para mudar o mundo tem também de se mudar a si (é sempre mais fácil responsabilizar só o parceiro); segundo, é mais simples enterrar a cabeça na areia, dizer que opiniões destas são pessimistas, irreais, e deixar o circo continuar.