... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, February 18, 2011

Tomar de Assalto a Bastilha de Si Mesmo



Mesmo quem não gosta de Espanha tem vontade de ler um jornal como La Vanguardia, nem que seja pelo título provocador que aponta para o futuro. Foi neste jornal de Barcelona que o escritor português Gabriel Magalhães (de quem eu nunca li uma obra que fosse, apesar de saber que ele ganhou o Prémio Revelação da APE e de ter gostado das entrevistas dele) escreveu um artigo muito interessante sobre o modo de ser português. Agora que já vos confundi sobre a minha noção de geografia, misturando a Bastilha com Barcelona e com Portugal -  dando vários argumentos àqueles que dizem que mais valia dedicar-me à cozinha do que aos estudos -  vamos descodificar o assunto para que o texto não se torne perceptível apenas para esquizóides: Gabriel Magalhães fez o doutoramento em Espanha e essa vivência distante da sua terra natal permitiu-lhe ter uma visão mais objectiva e crítica das raízes. Diz ele que “em Portugal […] aquilo que é real é sempre um pouco nebuloso.” Concordo e acrescento que o nebuloso também se torna rapidamente real (basta atentarmos na quantidade de boatos que passam por ser verídicos à velocidade da luz; aliás, conheço mesmo quem tenha lançado boatos para que fossem admitidos como verdades). Quanto à realidade ser nebulosa, todos sabemos que é impossível confirmar o que quer que seja do que hoje se passa no nosso país; a própria justiça, se antes era apenas uma senhora cega por dever de equilibrar sem preconceitos os pratos da balança, é hoje cega e surda por não poder adquirir provas contundentes de absolutamente caso algum.


Magalhães tem também uma tese muito própria sobre a democratização de 1974: diz ele que o país se convenceu que “todos iam passar a ser aristocratas, ricos e importantes”. Ou seja, ao invés de entenderem a revolução como o poder do povo, entenderam-na como o povo ao poder, e quanto mais poder melhor. Assim, inconscientemente, deu-se em Portugal (como noutros países do sul da Europa) um “regresso a uma mentalidade senhorial de outros tempos” e entrou-se “no séc. XXI a pensar como se pensava no séc. XVII”. Nesse momento, já o Estado tinha criado a ideia de um país muito desenvolvido e eminentemente Europeu (embora não tivéssemos qualquer consciência europeia enquanto povo), um país repleto de executivos acabadinhos de fazer cujas mãos estavam ainda sujas da enxada mas que, tal como a nobreza doutros tempos imperiais de Portugal, “vivia à grande e trabalhava com muita moderação”. Esta casta dita superior, que ainda há pouco proclamava a igualdade em Abril, entende agora que os postulados da sua grandeza são inabaláveis. Logo, necessita de preservar a manutenção do seu bem-estar pelas vias mais fáceis: os que se rebelam passam a ter estatuto de sub-humanos (como os servos ou não-cidadãos de outros tempos), sendo-lhes reservados direitos mínimos. Além disso, é a estes sub-humanos que compete produzir porque a casta não produz; ela vai-se alimentando, “sem reacção e sem inovação […] amodorrada no leito da sua grandeza.” Outra das características desta nova nobreza é que, pura e simplesmente, não tem ideias novas; papagueia as antigas, morrendo de medo que alguém diga algo de inovador que os faça perder os privilégios adquiridos.


Magalhães explica o esbanjamento (pessoal e comunitário) e as dívidas de um Estado pelo “apogeu desta nova mentalidade senhorial”: “uma sociedade com uma visão burguesa já teria feito contas há muito tempo.” Mas os nobres, esses esbanjam… até à bancarrota que tantas vezes assombrou a nossa história. O problema de hoje em dia é que a democratização do nosso canto foi mal conseguida, ao ponto de todo o cidadão se julgar um nobre! “O cidadão relaciona-se com o Estado acumulando benefícios, subsídios, privilégios – exactamente como fazia a velha nobreza que enriquecia com as mercês dos reis absolutos.” E cada um tornou-se um fidalgote de trazer por casa, aborrecidinho, ditador e egoísta.


Magalhães defende que, ao invés de avançar, o país retrocedeu muito nas últimas décadas. Não por causa da economia, mas porque estamos “vãos, fúteis, decadentes”. E a solução é cada um “tomar de assalto a Bastilha de si mesmo e transformar-se noutra coisa. Voltarmos a ser, clara e humildemente, pessoas.”
Claro que esta saída para a crise de valores tem dois senãos: primeiro, ninguém quer admitir que para mudar o mundo tem também de se mudar a si (é sempre mais fácil responsabilizar só o parceiro); segundo, é mais simples enterrar a cabeça na areia, dizer que opiniões destas são pessimistas, irreais, e deixar o circo continuar.


Friday, February 11, 2011

Raiz Comovida de Cristóvão de Aguiar



“Raiz Comovida” é uma trilogia romanesca que compreende “A Semente e a Seiva”, “Vindima de Fogo” e “O Fruto e o Sonho”. Publicados individualmente entre 1978 e 1981, os três acabaram por aparecer em ’87 num único volume. O próprio título da obra, forte e original, indica que estamos perante um livro cujo magma é memorialístico. De facto, o que conjuga estes três romances num só é a mesma teia-matriz de lembranças de vários elementos que, sendo diversos, têm em comum o húmus da Ilha, com os seus contadores de histórias e a sua natureza feminina e explosiva. A Ilha de quem o autor disse um dia que “o desinquietou de tal maneira que não teve outra opção que não fosse a de a ir iludindo com meia dúzia de livros que em absoluto nunca a aquietaram. Continua impertinente e ciumenta.”



Cristóvão de Aguiar nasceu em S. Miguel em 1940. Vinte anos depois, partiu para Coimbra, onde ainda hoje vive. Aquando da sua mobilização para a Guerra Colonial, escreveu um pequeno livro de poemas. A experiência da Guiné e de uma luta pessoal levou-o a voltar à escrita, desta vez explorando mais “o lastro afectivo e de recursos sentimentais” da sua terra. Ganhou vários prémios literários de destaque numa carreira não isenta de polémica e de reacções de amor e de ódio. Em 2001, foi agraciado com o Grau de Comendador da Ordem do Infante do Henrique. Talvez regresse aos Açores, para escrever (e aquietar) Coimbra.


Friday, February 4, 2011

Amigos, Amigos...

…negócios à parte. Este provérbio vem da época em que os amigos eram gente com quem se trocava olhares, falas e apertos de mão. Hoje, até os provérbios perderam actualidade. Como diz um Amigo meu (daqueles com A grande), o Facebook dá amigos e o Twitter dá seguidores: um Homem não precisa de mais para ter uma multidão de amiguinhos e companheiros para quase todo o uso – sim, convenhamos que não dá para jogar umas partidas de futebol ao fim de semana, mas já se inventaram uns jogos virtuais onde não entram suor nem abraços pós-golo. E até as figuras conhecidas da nossa minúscula praça ficam mais felizes (e simultaneamente fazem mais feliz um ou outro anónimo aspirante a deixar de o ser) ao colecionar uma extraordinária multidão de gente que não conhecem ou de quem se esqueceram, mas a quem até chegam a acenar na rua entusiasticamente perguntando em seguida, ao cônjuge, “quem é?”


Não sou contra as redes sociais, pelo contrário. São muito úteis para comunicar mais facilmente com Amigos que vivem longe e até para trocar ideias em rede com amigos que vivem perto. Mas aflige-me o modo como estas são mal-usadas ou levadas ao extremo. Para além disso, há dias em que abrir o Facebook é como ouvir a canção Eleanor Rigby – “all the lonely people, where do they all come from? All the lonely people… where do they all belong?”, tal é o volume de mensagens profundamente intimistas e solitárias que lá vejo, misturadas com apelos aos “únicos amigos verdadeiros que têm” (há gente que nunca viu aqueles a quem chama verdadeiros amigos).


Este fenómeno da solidão não é novo e é, provavelmente, um dos maiores problemas deste mundo porque toca todos os outros problemas graves: se falamos de abandono, de delinquência, de maus tratos, de problemas da terceira idade, de problemas juvenis, de doenças, de pobreza, raro é não estarmos também a falar de solidão. A solidão é aquele problema do qual é tabu falar, não só porque não é politicamente correcto e faz as pessoas parecerem muito pouco atraentes mas porque…pst…cheguem mais perto…é contagioso. De facto, “duas solidões fazem uma companhia” é a maior falsidade que já se disse. Esta opinião não é só minha. Para os que gostam que lhes atirem com calhamaços, Nicholas Christakis da Harvard University, James Fowler da University of Califórnia e John Cacciopo da University of Chicago publicaram um estudo no Journal of Social Psychology que explora exactamente o tema. Do estudo – patrocinado pelo National Institut of Aging, que acha que a meia-idade traz solidão agarrada como pó aos livros - resultaram os livros “Connected” e “Loneliness”. Segundo estes investigadores, os solitários são os maiores clientes das redes sociais e, contrariamente ao esperado, a sua solidão não acaba ali, mas sim aumenta e até se espalha a outras pessoas, criando o efeito de “sozinho na multidão”: “as pessoas solitárias alienam as restantes, sobretudo porque querem muito não ser solitários e preferem pessoas aparentemente vibrantes, que lhe dão atenção momentânea, insatisfatória”.



Quando era criança, recordo ver um programa de TV no qual aparecia o então estrela da rádio, António Sala. Telefonavam para lá muitas senhoras que diziam estar muito agradecidas ao Sr. Sala porque passavam o dia sozinhas e ele fazia-lhes companhia com a sua voz. O Sala respondia, com um sorriso Colgate, que a sua função era essa. Função, ou seja, um serviço de utilidade pública. Como as farmácias. A voz do Sala, antídoto para a solidão da dona de casa que pensa que a voz é só para ela, como a moça feia que vê a banda passar na canção do Chico Buarque. Eu penso que, hoje, o fenómeno da solidão, apesar de cada vez se conhecerem mais pessoas, é muito mais complexo. É que grande parte das pessoas ignora o verbo conhecer na acepção das línguas antigas, como o hebraico, onde não há distinção entre “Conhecer” e “Amar”: eu só posso Conhecer aquilo que Amo e vice-versa. Não há aqui lugares a meias-tintas fantasiosas.



Não é solução para a solidão? Talvez não seja. Afinal, se alguém tivesse encontrado um filão para o Amor, já teria enriquecido. Mas, em alternativa, pode-se sempre ouvir um samba, ir à praia e arranjar um cão. Poucos amores são tão incondicionais. Garanto que o cheiro, o tacto e a alegria sincera de um cão por nos ver batem aos pontos qualquer computador.