... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, March 24, 2011

Descobri que era europeia – Natália Correia


A jovem Natália de 26 anos, “com a febre das coisas e esper[ando] a cada momento uma revelação”, partiu para conhecer Boston, New York e Washington em 1949, quando viajar de avião entre Lisboa e os EUA demorava vinte horas. Dessa viagem resultou um registo diarístico, mistura de relato de viagem de uma mulher fora do seu continente com crónica documentarista, onde o incisivo “veneno crítico” da intelectual já está muito presente. A autora partira com muitas interrogações sobre esse Mundo Novo, ainda cheia de um deslumbramento infantil causado pelos “calafonas” açorianos, de um idealismo que os americanos lhe insuflaram na Guerra e através do cinema mas também da posterior queda desses ideais pela época pós-guerra: “Não levo ressentimento nem amor; apenas curiosidade”. Afinal, mais do que o descobrir da América, a viagem é o descobrir da consciência íntima da referência cultural de Natália, que, assim, encontra o seu lugar: “descobri então, com deslumbramento, a minha posição no mundo: era europeia.”




Natália Correia (1923-1993) é o nome de mulher açoriana mais conhecido quando o assunto é Literatura. Uma obra larga em vários domínios, de onde se destaca a poesia, é, por vezes, obscurecida pela sua participação cívica de cariz muito combativo e em que a capacidade de oratória, a crítica sem receios e a ousadia inusitada fizeram dela um ícone polémico - as suas opiniões acerca da liberdade feminina criaram um movimento; uma antologia de poesia erótica valeu-lhe pena de prisão suspensa; a sua acção como deputada foi marcada pela sátira certeira; como intelectual., fundou o famoso Botequim, recebeu o Grande Prémio da APE e as Ordens de Santiago e da Liberdade; finalmente a sua beleza de estátua aliada ao intelecto superior mais fez crescer a aura de perigosa e arrogante numa mulher em tudo diferente das mulheres da sua época e, até hoje, sem paralelo.

Monday, March 21, 2011

O Amor Natural



N.B: preâmbulo para entender as "regras do jogo" desta miscelânea de autores e de vivências que passam pelo Suma Irracional : a cada quinzena, é dada uma palavra e cada "autor" escreve (ou pinta) algo sobre a palavra dada. A palavra da vez foi "CASTO", segundo a qual escrevi o textinho que se segue. 

Este desafio de escrever sobre o adjectivo “casto” não é coisa fácil…
Embora, semanticamente, casto seja sinónimo de inocente e de puro, a palavra assume uma conotação bem mais associada ao que é virginal. Por princípio, não se dirá de uma criança que é casta, mas sim inocente; não se dirá de uma alma que é casta, mas sim pura. Ou seja, no estado actual do português europeu, o uso vulgar de “casto” adquiriu uma ligação directa à ausência ou abstinência de relações sexuais.
 
Esta reflexão linguística levou-me a pensar no porquê do uso corrente. Creio que, possivelmente, se prende com os votos evangélicos feitos pelos sacerdotes católicos: pobreza, castidade e obediência. Nesta linha de pensamento, a castidade é entendida como uma privação sexual por vontade própria para manter honradez. Há poucas coisas com as quais eu mais esteja em desacordo… A honra, dignidade, pureza (de alma e corpo) e até a inocência não têm de combinar com este conceito de castidade.
 
No entanto, e paradoxalmente, é interessante verificar que o adjectivo “casto” é muito procurado pela literatura, sobretudo a poesia e a prosa romântica, para  caracerizar exactamente situações de envolvimento físico amoroso, numa tentativa de transformar relações declaradamente físicas em conceitos pseudo-platónicos: temos 
casalinhos que dão “beijos castos” seguidos de “suaves e castos toques”, etc.

Mas há poetas com rasgos de génio e a poesia, como arte maior da contradição humana, consegue fazer obras-primas com a ideia de que o sexo é, afinal, pureza:

A castidade com que abria as coxas 
e reluzia a sua flora brava.

[…]


Em minha ardente substância esvaída, 
eu não era ninguém e era mil seres 

em mim ressuscitados. Era Adão, 
primeiro gesto nu ante a primeira 
negritude de corpo feminino. 
Roupa e tempo jaziam pelo chão. 
E nem restava mais o mundo, à beira 
dessa moita orvalhada, nem destino.

(Carlos Drummond de Andrade, “O Amor Natural”)

Casto é o espanto da entrega amorosa. Casto é o Amor, quando  ele existe.

Friday, March 18, 2011

Pequenos Leonardos


Ir ao pediatra com as nossas crianças é uma experiência fascinante que começa, desde logo, na sala de espera. A aglomeração de mães e seus rebentos provoca um ambiente curioso: as progenitoras como soldados conscientes do seu dever não raro esperam horas infindas, durante as quais as crianças – felizmente ainda libertas de restrições sociais – se portam como… crianças apenas, mau grado os diagnósticos modernos de “hiperactividade” e “défice de atenção” que se vendem como banha da cobra e cujas panaceias transformam os meninos em seres amorfos e com um raciocínio de hamster. Homens nestas salas de espera são escassos, excepto se têm filhos bebés. Quando os bebés crescem, a esmagadora maioria dos pais desiste de aparecer, alegando razões de trabalho; a verdade é que os berros das crianças e as perguntas quase insultuosas de algum do nosso staff de saúde como “dá banho ao seu bebé todos os dias, não dá?” lhes mexe demasiado com os frágeis nervos, mais habituados ao convívio sócio-laboral de falso elogio constante.


Na sala de espera, as mães - sabe-se lá se por um mecanismo de compensação - não hesitam em exibir os filhotes umas às outras. Se são pequeninos, certo é que a sua coordenação motora e capacidade cognitiva vai muito para além do que seria de esperar na sua idade; se são mais velhos, denotam uma intelectualidade superior, uma veia artística inconfundível, uma habilidade desportiva de destaque, e sobre alguns cai a suspeita sussurrada de sobredotados.

Por consequência, do mesmo modo que nas restantes salas de espera do Hospital, estão velhotas a comparar as suas doenças e lutando afincadamente para provar à sua vizinha de cadeira que estão mais doentes e carentes de cuidados do que esta, na sala de espera da Pediatria estão mães em competição, demonstrando à mãe do lado que o seu filho, apesar de só ter seis anos, já tem aulas de natação, vela, anda no conservatório e nos escuteiros e aprende francês depois das aulas onde tem tido excelentes notas: “e o teu, que faz?” Quando ouço o relato destes dias infantis, recordo sempre um miúdo que dizia à mãe “mas hoje ainda não brinquei!” quando esta o avisava que eram horas de ir dormir…

Recentemente, Amy Chua, professora de Direito americana de origem chinesa, lançou um polémico livro sobre a severa educação que impôs às suas filhas. Chua defende que a civilização ocidental é permissiva e laxista, pelo que os seus rebentos não podem nunca ser excelentes; por oposição, ela optou por uma disciplina rígida destinada a produzir prodígios (note-se que a produção implica que eles não terão nascido com as características necessárias ao chispe de génio que, desde cedo e fatalmente, distingue qualquer sobredotado e o isola para sempre). Chua relata episódios que parecem chocantes para a cultura europeia, como pôr as filhas de 4 anos ao frio da neve porque não tiveram boas notas; obrigá-las a praticar piano até deixarem as marcas dos dentes nas teclas de tanta raiva que sentiam; rejeitar os cartões que lhe fizeram para o aniversário “porque não eram suficientemente bons” ou ameaçar queimar todos os seus peluches se não tocassem como deviam. Mas, segundo ela, foi isso que produziu uma campeã olímpica (com Síndrome de Down) e duas talentosas alunas e dotadas intérpretes musicais. No entanto, Chua admite, também, que – para além das diferenças culturais educativas que são sempre importantes – as filhas não reagiram bem emocionalmente, acabando por lhe responder por monossílabos, por partir loiça de restaurante em público em zangas familiares e por afirmarem um ódio passivo-agressivo. Em suma, são tão afectivamente voláteis, carentes e tendencialmente ávidas de um perfeccionismo impossível de preencher como a mamã.

Claro que é impossível saber qual o melhor modo de educar um filho, porque não há ensaios e os livros de instruções alheios não servem. Mas não será que, na ânsia de criar modelos à sua própria imagem (ou melhor, à imagem do que gostariam de ter sido), os pais se esquecem da individualidade que cada ser humano tem?

Nem todos em Da Vinci nascem para ser Leonardos. Além disso, quando acaso nasce um Leonardo, ele não necessita de tanto empenho por parte dos outros para ser ele próprio. Irremediavelmente, para o bem e para o mal, tem a matéria-prima que brilha e que lhe vai trazer um mundo mais vasto, mais rápido, olhos mais abertos… e, por consequência, muita solidão e incompreensão porque Leonardos não estão aí aos molhos – são como extraterrestres num mundo mais habituado a premiar gente da sua terra.

Friday, March 4, 2011

Tem dias



Eu nunca gostei de “dias de”, essa obrigação de calendário que nos manda ser à força qualquer coisa numa determinada data, imposta pela razão ditatorial de alguém e pela razão tribal de que todos os outros seguidores de calendário também o são. E nós, ovelhinhas bem treinadas, não questionamos e vamos sendo amantes a 14 de Fevereiro, amigos dos animais a 4 de Outubro e das criancinhas a 1 de Junho, linguistas a 21 de Fevereiro, ambientalistas a 5 de Junho e melómanos a 1 de Outubro, católicos no Natal e talvez na Páscoa e bêbedos na Passagem de Ano (os exemplos são puramente aleatórios e não pretendem ofender).


Por esta razão, sempre me desgostou essa efeméride do Dia Internacional da Mulher. Já a minha avó dizia, rindo, que a mulher tinha um dia porque do homem eram todos os restantes! Neste sarcasmo existe algum fundo de verdade, pois todos os “dias de” humanitários são dedicados a franjas minoritárias da população, seja por razões étnicas, físicas, etárias, de género ou outras. Ou seja, quem está no topo da cadeia social, governa, dispõe e controla, logo não precisa de ter um “dia de”. No topo da sua magnanimidade, estabelece e oferece “dias de” aos que estão mais abaixo na escala, criando por exemplo “O dia Internacional do Idoso”, “O dia Internacional dos Migrantes”, “O dia Internacional da Pessoa com Deficiência”, “O dia Internacional da Mulher”, etc (se algum dos que me lê conhecer o dia do Adulto, o dia do Cidadão Nacional, o dia do Não-Deficiente, e por aí fora, um só dia que seja que celebre uma não-minoria, mande-me um e-mail, sff).


De todas estas celebrações, notem por favor uma aberração chamada “O Dia Internacional da Criança Negra” – celebra-se a 16 de Junho e é a prova que os governantes deste mundo consideram que a criança negra não é bem igual às outras crianças cuja pigmentação dérmica de melanina e caroteno as fez nascer, por acaso genético, doutra cor. Os negros que crescem e chegam à idade adulta, desiludam-se porque deixam de ter um dia que lhes seja dedicado. Não é que deixem de ser considerados diferentes - como vocês bem sabem, porque em parte alguma deste mundo se diz “A cantora branca, Madonna” mas toda a gente diz “A cantora negra, Carla Cook” (não sou eu, mas gostava de ser porque ela canta bem, embora não seja uma Ella Fitzgerald) -; o que acontece é que os nossos manda-chuvas mundiais deixam de assumir uma hipócrita atitude protectora e paternalista e passam a assumir uma atitude de desprezo velado.


Sim, claro, hoje somos todos muito informados e conscientes de que é o medo e talvez alguma culpa que gera estas atitudes em relação às minorias. Mas nem por causa da consciencialização, a atitude desapareceu.


Vamos lá, então, ao Dia Internacional da Mulher, que inicialmente se chamava Dia das Mulheres Trabalhadoras. A ideia parece ter nascido com bons propósitos (daqueles dos quais está o Inferno cheio), para celebrar o papel das mulheres enquanto operárias fabris e não apenas donas de casa. De facto, nas culturas que tiveram ditaduras de esquerda, como a Rússia, ou nas que ainda têm, como a China, este dia é elevado a feriado, porque foram estes países que pensaram o Dia da Mulher, sobretudo a URSS após a Revolução de 1917. A queda da ditadura levou a que o Dia da Mulher fosse mal visto durante breve tempo – afinal, era um “símbolo do regime” – mas actualmente as espertas mulheres voltaram a reclamar o direito de não trabalhar e de receber presentes, sendo que, nesses países, é costume os homens presentearem as mulheres da sua vida neste dia especial.


Por cá, é mais um “dia de”. Ultimamente, começou-se a instaurar o hábito de dar uma flor às mulheres (na rua) – no dia seguinte, já é permitido partir-lhes o vaso na cabeça (em casa) no meio de uma discussão porque do homem são todos os dias. Mas agora, temos uma diferençazinha a nível internacional: as Nações Unidas instauraram, desde 1999, o Dia Internacional do Homem que se celebra a 19 de Novembro. É que a ONU achou por bem “equilibrar os géneros”, promover a não-discriminação, a igualdade e as boas práticas. Só por acaso, a ONU decidiu instaurar a primeira celebração deste dia em Trinidad e Tobago. Em alguns países, incluindo Portugal, ainda não se celebra o Dia Internacional do Homem. É que, por cá, ainda não estamos tão avançados como Trinidad e Tobago no que à igualdade de género diz respeito… Mas lá chegará “o dia”!


Até lá, mulher, se queres triunfar, segue o conselho do célebre francês Serge Gainsbourg que assim cantava em plena década de 60, uma década em que supostamente se celebrava a liberdade a todos os níveis: “sois belle et tais-toi…”