... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, June 16, 2011

O caminho Ziryad

Recordo-me do cheiro a jasmim que me inundava as narinas quando eu passava, apertando a mão de minha mãe, debaixo dos tornados de folhas que pendiam sobre o caminho de Ziryad, essa minúscula faixa de terra que vai do Boulevard Bougara ao Télémly numa sucessão de curvas tortuosas.

Poderoso e penetrante, o odor do jasmim inebriava-me e eu lutava, apesar das fortes imprecações de minha mãe que apressava o passo, vendo-me diminuir ou parar cada vez que passávamos sob o arco perfumado dessas deliciosas pequenas flores brancas. Quando ela, imprudente, me deixava a mão, eu saltava como um cabrito para agarrar uma das flores, e, por vezes, várias ao mesmo tempo. As suas pétalas, frágeis como borboletas, eram mantidas por mim na palma de uma mão, abrigando-as timidamente com a palma da minha outra mão, e assim formando uma espécie de concha que as protegia do mundo e, ao mesmo tempo, me invadia um pouco mais com o seu perfume.

No Verão, o caminho de Ziryad vestia-se com os seus mais belos trajes. Perfumado pelo jasmim, era também banhado por uma sombra voluptuosa que envolvia quem por lá passava, afastando-o do calor de chumbo que reinava fora desse local. De tempos a tempos, o silêncio era quebrado pelo zumbir de uma vespa ou pelo canto melodioso de um pintassilgo. Desde o início até ao fim, estávamos ali como numa ilha, abrigados da cidade que, a toda a volta, rugia furiosamente, protegidos desse seu barulho, das hordas de carros rolando em turbilhão, cuspindo o seu veneno nas calçadas demasiado estreitas e incendiando-nos as orelhas com as suas buzinas ensurdecedoras. Fazíamos este caminho duas vezes ao dia, pelo menos: de manhã, para ir até casa do tio Walid que morava na Rua Montgolfier, e à noite, para voltarmos para casa. De manhã, os traços da noite ainda tentavam desaparecer. O ar estava ainda fresco e as flores de jasmim, ainda cheias de gotas de água, metralhavam-nos de tristeza ao deixar cair as suas lágrimas nos nossos rostos. Os homens que se cruzavam connosco apressavam o passo para chegar ao seu trabalho no centro da cidade, e alguns deixavam atrás de si um cheiro misturado de delicioso e suave café e de bolos. A minha mãe seguia esta cadência matinal e eu não tinha outra escolha senão acelerar o passo, colocando-me na sua esteira. Não era o momento de preguiçar, de levantar a cabeça para os cachos de jasmim ou de jogar com as pedras como se fossem bolas de futebol! O meu tio, que fora marinheiro, não tolerava atrasos e nem a minha mãe nem eu queríamos afrontar a sua cólera, que seria certa caso a nossa pontualidade não fosse perfeita. Por isso, a manhã não era propícia a passeios. O caminho Zyriad, na sua frescura e humidade, não me parecia ainda livre das garras da noite hostil.

Ao fim da tarde, porém, passava-se exactamente o oposto. Era preciso subir em vez de descer, mas esta subida frequente e, na verdade, dolorosa das ruas em escadas de Alger, assumia um carácter de viagem agradável. Libertos dos constrangimentos do dia, do trabalho e suas obrigações, cada qual demorava o tempo que queria para chegar até ao fim da estrada e entrar em sua casa, como os barcos de pescadores que regressam ao seu porto à hora do crepúsculo. Todos em sintonia, marchando até com alegria, nós inspirávamos os odores, o do jasmim, sem dúvida, mas também todos os outros, os sedutores e até os culinários que se escapavam das casas adjacentes juntamente com os risos das mulheres. Um cheiro de cominho atravessava os muros altos e os ramos espessos para chegar até ali, à sombra do caminho Ziryad, misturar-se com os aromas da bolacha, das sardinhas grelhadas ou das cebolas fritas. Não sabíamos sequer para onde virar a cabeça, tantas eram as sensações das nossas papilas gustativas solicitadas por essa formidável avalanche de sabores doces e salgados que, tal como rios perfumados, traziam tudo o que a imaginação pode conter em pratos suculentos, juntando-se ao grande rio Ziryad onde navegávamos e do qual eu não queria mais sair.

Ainda hoje, o caminho de Ziryad representa, para mim, esse lugar de reclusão deliciosa onde adoro afundar-me entre os requintados cheiros do meu passado e as escuras cores que o habitam, onde sinto ainda a mão da minha mãe agarrando a minha enquanto, sobre as nossas cabeças, se derrama o maravilhoso perfume do jasmim.

 
N.B.: Este texto foi uma tradução que fiz de um original francês de Karim Amellal, para o suplemento de Imprensa da AIPA dedicado a África: "Cheiros de África".  

O Verdadeiro Problema do Acordo

Desde que Portugal resolveu falar “à brasileiro” que tenho lido muitos inflamados textos de académicos a protestar sobre o assunto, já para não falar nas petições. Mas parece-me a mim que toda a argumentação usada está a passar ao lado do verdadeiro cerne da questão que é - e só para citar alguns aspectos verdadeiramente relevantes - como vão os portugueses pedir comida, como vamos nós insultar ou elogiar o próximo, como vão os homens cortejar (à falta de melhor verbo…) as mulheres, e, last but not least, como vamos à casa de banho pública a partir do momento em que o acordo vigorar. Isto porque há uma série de expressões muito lusas que vão acabar por ir à vida.


Claro que algumas coisinhas já entraram, né? Olha eu dizendo né! Olha o dicionário pobre do computador em que muito Doutor confia que não me corrige quando eu escrevo “olha eu”...

Vamos supor que João, português e Leila, brasileira estão a falar de um filme e João diz que o filme era mesmo giro. Leila espanta-se: “giro?!”. É. O brasileiro não diz “giro”. Vamos, em breve, abolir “giro” das nossas conversações. Essa coisinha engraçada, fofa, interessante, bonita, elegante, com hipóteses de vir a ser outras coisas mais, que a palavra “giro” engloba vai desaparecer. Pessoalmente acho trágico. O “giro” vai passar a ser “bacana”, que, convenhamos, não é nem de perto nem de longe a mesma coisa. E que dizer do uso de “legal”, na acepção lusa da palavra? “Legal” para um português é uma coisa dura, de tribunais apenas. “Supimpa”? Quanto ao filme ser “fixe”, isso está definitivamente fora de causa. A Leila jamais perceberia. O “fixe” morre com o acordo.

Os famosos “bué” e “pá” têm os dias contados. Pois. Ah, brasileiro também não usa “pois” no início de cada frase (atenção congressistas!).

Se, noutra esfera, o João quiser dizer à Leila que ela é uma rapariga gira, que adjectivos lhe restam? Bonita? É demasiado forte. Bonitinha? Se Leila fosse portuguesa e fosse adjectivada de “bonitinha” ficaria com vontade de lhe atirar um copo de água com gelo à cara. Seria um adjectivo muito insuficiente. Piora um pouco se o João disser à Leila, sua amigalhaça, que ela é uma rapariga muito “porreira”. Leva um par de estalos logo ali. Eu cá nunca vi um brasileiro que não pensasse que uma palavra com um som desses não fosse um insulto (e quem os pode censurar?).

Lembrei-me agora que “estalos” é outra coisa que não (se) dá em brasileiro... Tinham de ser “tapas” mesmo. É.

E se a Leila for uma rapariga como eu, o João depressa há-de saber o que são “quitutes”, mas não lhe pode dizer que vai comprar “cacetes”, porque cacete em brasileiro também não dá pão.

Há algum tempo, ensinei português a estrangeiros e tinha duas assistentes, sendo uma brasileira e outra angolana. Isto era muito engraçado para os alunos mais avançados e muito complexo para os principiantes. Por exemplo: “A Eva diz bumbum. Em Portugal não se diz “bumbum”?” Claro que não, e só para complicar, os portugueses têm para o rabiosque palavras de foro científico, palavras de uso comum, diminutivos e até palavrões. “Mas não pode ser bumbum?” Não, essa não temos. Concordo que é mais fácil ser brasileiro. Um português a dizer “bumbum” com a sua pronúncia europeia é como se estivesse engasgado a falar de um doce. Não soa bem. É como dizer que o tal filme é “legal”. Não tem o ar bamboleante, leve e festivo da expressão em brasileiro; não pode. A pronúncia do português europeu – que é muito bonita mas com um escopo fonético muito mais abrangente - dá a certas palavras um ar de gravidade, um contexto demasiado sério. Por isso, exigimos um “giro”, um “fixe”, umas palavras airosas e com vogais agradáveis para desmistificar.

Noutros campos, sobretudo na categoria verbal, os brasileiros gostam genuinamente de inventar palavras (“deletar” como um de muitos exemplos). Os portugueses estão a querer imitá-los. Os brasileiros estão preocupados com coisas sérias como a corrupção e a fantasia que vão usar no Carnaval (já mencionei que os portugueses estão a querer imitá-los? Neste campo, também!) para se preocuparem com a gramática rígida e inventam alguns destes vocábulos que, de tão jeitosos, entram no uso comum.

E porque é que isto tudo, que é pouco ainda, faz sentido para os brasileiros mas não faz para nós?

Porque a variante de uma língua reflecte uma cultura e ninguém tem dúvidas que a cultura brasileira é diferente da portuguesa. Ou tem?

Como disse Mário Prata, escritor brasileiro que viveu em Portugal, “Se houvesse filólogos na época do império romano, não teríamos hoje nem o português, nem o italiano, nem o espanhol, nem o romeno. Os filólogos teriam unificado tudo. Todos falaríamos, até hoje, o latim. E, pior ainda, o latim clássico, já que os soldados esparramaram pelo mundo o vulgar.”

A quem interessa este acordo que estamos querendo implementar a não ser aos vendedores de dicionários? Meu deus, eu me pergunto.

Friday, June 10, 2011

Estados Unidos da Europa



É muito difícil explicar, hoje, o que é a União Europeia. Podemos socorrermo-nos de conceitos como “mercado global” e “moeda única”, mas temos de explicar que há quem esteja na União Europeia e não tenha adoptado o Euro, como o Reino Unido, e, paradoxalmente, há quem não esteja e o tenha adoptado, como Montenegro; podemos falar da “livre circulação de pessoas com a abolição do controle de passaporte entre os seus membros”, mas aí logo caímos no Espaço Schengen, que, ele sim, corresponde a esta frase e cujos 25 países membros não são os 27 países da UE; podemos ir buscar o conceito institucional de um conjunto de estados independentes supragovernados pelos vários órgãos da União, cujas decisões são sempre baseadas em negociações intergovernamentais, mas todos sabemos que as “políticas comuns” não podem nunca beneficiar todos e que países economicamente mais necessitados acabam por ceder em muito maior escala.


Talvez o mais seguro seja afastarmo-nos da governação e explicar a União Europeia pelos seus ideais. Mas aí teremos de explicar que a UE começou depois da II Guerra Mundial, com nobres intenções de criar uma federação da Europa para que não mais houvessem os perigos dos nacionalismos extremos que tanto tinham devastado o velho continente nos anos anteriores. Então damo-nos conta que estamos à beira de uma contradição, pois, invariavelmente, temos de explicar como é que esta UE tem hoje figuras de proa como Sarkozy e Merkel, cujas políticas de extremo nacionalismo roçam o indecoroso e porque é que quase todos os países da Europa se tornaram, nos últimos anos, defensores extremos de uma ideia de pátria que exclui estrangeiros, mudanças, flexibilidade e ideias progressistas, muito menos igualitárias.


Ian Buruma, Professor de Direitos Humanos, escreveu um livro sobre Religião e Democracia intitulado “Taming the Gods” onde expressa exactamente este falhanço europeu, que a América experimenta de outra forma. Buruma opina que a Europa liberal e tolerante está moribunda. Tal como vários mass media (Newsweek, Courrier International, Press Europe) têm noticiado, a Europa inteira está a virar à direita, mas essa viragem não é uma simples questão de pendor partidário; é, sobretudo, uma questão de mentalidade ajudada pela conjuntura. De facto, o sentimento de que existe uma crise económica cria todo um clima de insegurança e até de precariedade ou  fome. A última sondagem do Eurobarómetro mostrou que um número elevadíssimo de jovens europeus quer deixar os seus países porque “não encontra futuro” - só na vizinha Espanha, são 70% dos inquiridos.


Perante este quadro, havia que ser politicamente ousado sem deixar de ser popular. Por mais surpreendente que possa parecer, a esquerda europeia tem falhado relativamente à ousadia. De facto, segundo os analistas, a esquerda europeia tornou-se tão conservadora e tão esquecida dos ideais que professava, que é fácil interrogarmo-nos se não estamos perante a direita! Por seu lado, aproveitando-se do acobardamento de uma esquerda amedrontada que vai buscar ideias e pessoas à direita, a direita agigantou-se, como única alternativa possível, e tornou-se mais fresca e segura de si, apresentando figuras com estatuto de líder pela Europa fora e dizendo-se “conservadores progressistas”.


As pessoas estão confusas e com razão, pois, como bem salientam os analistas da política europeia, a ideologia morreu. Neste momento, o pragmatismo e o sentido de adaptação comandam as hostes. Se bem que estas duas qualidades são de louvar, a esclerose ideológica está repleta de perigos. Um deles é, sem dúvida, o regresso dos nacionalismos que já se começa a verificar, varrendo a Europa devagarinho, sem o aparato de outros tempos, mas com a força de pessoas bem falantes e bem posicionadas que garantem que os seus países só terão melhores economias se se limparem dos outsiders que tiram trabalho aos da terra e que inimigos da nação são todos aqueles cuja religião, costumes, língua, cor é diferente. A Europa incompatibiliza-se, pouco a pouco, entre si. Por enquanto, vai fazendo guerra aberta aos vizinhos que querem entrar na UE. Em breve, fará guerra aberta aos países mais pobres cujos jovens querem trabalhar nos mais ricos. Nos últimos meses, muitos discursos políticos apontam claramente nesse sentido. E até há movimentos na net - “We will not pay for Portugal, Greece, Ireland and Spain” - onde somos acusados de beber, fazer praia e dançar pela noite fora à custa dos verdadeiros trabalhadores da Europa.


No já ido ano de 2004, o Dr. Paulo Portas (então Ministro da Defesa Nacional) disse que não concordava com misturas de sangue. Dois anos depois, muitos portugueses foram expulsos do Canadá e o Governo português provou um bocadinho daquilo que também apregoara… Mas, convenientemente, já se tinha esquecido de que quem tem emigrantes também se sujeita a ter imigrantes.