... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, September 30, 2011

A diferença


Ontem, visitei o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos. Teria sido uma visita como tantas outras, já que perdi a conta às vezes que visitei este Centro desde o dia da inauguração até hoje. Mas foi completamente diferente, porque o guia da visita era uma senhora cega – sei que está na moda dizer “invisual”, mas eu gosto de palavras puras e não percebo porque assusta e incomoda a frontalidade das palavras quando elas são bonitas e não agressivas.

O Centro de Interpretação do Vulcão inaugurou ontem a sua sinalização em braille. Não é coisa pouca, sobretudo porque a Vanda – nossa guia, moradora no Faial – explicou que existem muito poucas instituições em Portugal que tenham instalado esta facilidade. A Vanda Ângelo não fala de cor. Fala porque viaja e conhece. Gosta de novos lugares, sobretudo “espaços com boa sonoridade” – as grutas, as igrejas. Conhece Roma e Paris. É com alguma insatisfação que diz que o Museu do Louvre não tinha ainda sinalização em braille quando ela o visitou. Mas como é optimista confia que é possível que já a tenham adoptado.

Connosco, estavam outras pessoas com deficiências visuais. Graças a elas, fomos aprendendo a “ver” o Centro de outra maneira. Excepto o Farol, que elas podem visitar mas apenas acompanhadas por alguém – até porque o Farol é complicado. Por desconhecimento meu, não sei até que ponto o seria realmente, porque a Vanda já subiu a Montanha do Pico. E, aliás, reclamou porque não esta não tem (ainda…) sinalização em braille.

No Centro, para além da sinalização em braille no chão, que dá indicações sobre direcções, existe ainda sinalização nas paredes e um guia. O guia é suficientemente extenso para que se compreenda tudo o que está no Centro e, além disso, explica pequenos detalhes essenciais à visita.

A Vanda explicou que, nos Capelinhos, está tudo sinalizado em braille em português mas também em inglês, o que se compreende facilmente - o braille não é uma linguagem; é uma forma de representar línguas de forma táctil e, como tal, é naturalmente arranjado de forma diversa consoante a língua que se propõe representar.

Dado que sofro do egoísmo que assalta todos os seres humanos, disse-lhe que só me tinha dado realmente conta das necessidades prementes das pessoas com diferenças quando na minha família nuclear nasceu um surdo profundo. Também só aí, e porque tive de começar a aprender, me apercebi que a Língua Gestual Inglesa é uma coisa e a Língua Gestual Portuguesa é outra língua diferente. Infelizmente, também só nessa época entendi que o mundo não está minimamente preparado nem organizado para pessoas que têm uma única limitação sensorial, por mais dinâmicas, inteligentes e ultra-sensíveis que sejam.

Hoje em dia, já não tenho um surdo na família. Ele já ouve - apesar de eu, como todas as mães, me queixar de que “ele só me responde quando quer…!” Não posso negar que fiquei feliz com o reverter da situação. Mas nunca deixei de ser atenta a estas coisas que dantes me passavam ao lado.

É por isso que ontem foi a minha melhor visita ao Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos e o melhor Dia Mundial do Turismo que passei. Dou os parabéns sinceros à Azorina, que rege o Centro, e à Associação de Pais e Amigos dos Deficientes da Ilha do Faial porque sei que foram muitos os envolvidos para que isto se realizasse.

Termino com uma pergunta do poeta inglês Edward Young: “Todos nascemos originais – porque é que tantos de nós morrem sendo cópias?” que eu penso ter sido muito bem respondida pelo americano e.e.cummings “Sermos apenas nós mesmos num mundo que faz o seu melhor por nos tornar iguais aos demais é travar a mais árdua batalha humana e a única que nunca termina."

Sunday, September 25, 2011

O Livro da Selva de Rudyard Kipling




É seguro dizer que o jovem Mowgli, a pantera negra Bagheera, o urso Baloo e o tigre Shere-Khan são hoje personagens mais conhecidas devido ao último filme de animação produzido pelo próprio Walt Disney - O Livro da Selva (1967). O filme foi baseado no livro com o mesmo título (1894), um conjunto de histórias em tom de fábula em que os animais são antropomorfizados e em que a personagem principal é um rapazinho abandonado em bebé na selva e criado por lobos desde então.

As “crianças selvagens” e o seu isolamento completo face à sociedade era um tema caro ao mundo desde os ensaios de Rousseau a que as descobertas de Lévi-Strauss dos meninos-lobo encontrados precisamente na Índia em 1911 vieram avivar em termos de teorias de aquisição da linguagem e de psicologia do desenvolvimento.

Mas a ideia de Kipling - nascido e criado na Índia, embora súbdito britânico – era fazer contos alegóricos da sociedade da época, metaforizando a sua política, movimentos nascentes, costumes, leis morais, ética, e perigos. A comunidade da selva do livro de Kipling tem um código ético tão interessante e corajoso que inspirou muitos na época – inclusivé Baden-Powell, fundador do Escutismo, que assim teve a ideia para os jovens Lobitos.

Kipling ganhou o Nobel da Literatura em 1907 “pelo seu poder de observação, imaginação original, virilidade de ideias e extraordinário talento narrativo”. Foi o primeiro escritor de língua inglesa a recebê-lo. Continuam a ser polémicas as suas obras: ora é visto como um emblema do colonialismo, ora se detêm nele como um génio versátil e inovador. Certo é que as suas histórias são ainda hoje atractivas, sobretudo para os rapazinhos aventureiros.

Monday, September 19, 2011

Estrangeiro, olha-te ao espelho


Certa vez, estava eu em França temporariamente a trabalhar com uma amiga quando fomos assaltadas. O que mais nos surpreendeu foi a reacção dos franceses a quem contávamos o sucedido. Todos, sem excepção, abanavam a cabeça e diziam "Este país está cada vez pior. Estamos cheios de árabes /argelinos / marroquinos, turcos, ... Já não se pode andar descansado!" Quando lhes perguntávamos porque é que não punham a hipótese do assalto ter sido feito por um francês - visto não termos visto a cara do assaltante - não havia quem não respondesse que era muito improvável que um verdadeiro francês se dedicasse a actividades criminosas. Um verdadeiro francês, reparem bem! É que existem os que são de mistura, ao estilo cevada para café com leite.

Perante esta reacção tão sentidamente convicta por parte dos nossos colegas parisienses, nenhuma tinha vontade de lhes dizer das suas confusas raízes, mas lá encontrámos coragem para ripostar que também nós éramos, afinal, estrangeiras ali... "Oh, mas isso é completamente diferente, minhas queridas! Vocês não estão aqui a morar!" Portanto, o problema não era ser estrangeiro em França. Era sê-lo e ter a intenção de assentar lá arraiais. O nosso trabalho (muito) temporário não incomodava ninguém, não mexia com as mentalidades, as economias, as demografias, não tirava nem dava nada à França, excepto um par de turistas a mais que - quando muito - acrescentava colorido e produzia sensação em meia dúzia de bons patriotes.

O interessante desta pequena história é que, há algum tempo atrás, acompanhei com esta amiga uns turistas cá nas ilhas. A certa altura, ela advertiu-os sobre não deixarem as malas à vista quando saíssem do carro e, perante o espanto deles porque consideravam as ilhas paraísos sem crime, ela, muito naturalmente, disse que já tinham sido assim paradisíacas mas que depois tínhamos recebido grande vaga de imigrantes e de retornados e, logo, o crime tinha aumentado e "isto nunca mais tinha sido a mesma coisa!" Não perdi a oportunidade de lhe dizer que ela estava a agir tal qual como os nossos amigos parisienses que tanto a tinham chocado na época com as suas afirmações xenófobas. Com aquela expressão de quem foi apanhado em falta, ela disse-me que nem se tinha dado conta disso. "Talvez tu te dês mais conta destes pormenores, porque andaste imigrada... Nós dizemos isto por instinto; não é por mal", justificou.

Não quero trazer aqui à discussão as variadas teorias psico-sociológicas sobre O Outro e a nossa relação com ele. As teorias existem em calhamaços, são discutidas em academias e congressos, mas a prática é tão velha como o mundo com humanos dentro. Os homens criam tribos, as tribos ficam definidas por espaços territoriais e a sobrevivência da tribo passa pela defesa desse espaço (não só mas também) face a outras tribos. O medo do Outro e a ignorância do que ele é justificavam as atitudes de repulsa e até de ataque. A evolução humana trouxe o conceito de "extraneus" - em latim, "estranho" e "estrangeiro" sendo uma e a mesma coisa, o que ainda subsiste em castelhano. Faz sentido. Se em português, "estranho" e "estrangeiro" são hoje coisas diversas, não se apresentam totalmente distintas dentro das nossas cabeças. Pena é que não tenhamos também herdado e mantido até hoje das civilizações antigas que nos fizeram berço o seu extremamente prezado conceito de hospitabilidade, cuja ética levava a tratar com cortesia qualquer "estranho" que entrasse no nosso território em busca de abrigo. Pelo menos, até que o “estranho” provasse ser inimigo. Pois “estranhos”, uns para os outros, nunca deixaremos de ser e isso dá muito mais musicalidade à vida. Como dizia certo músico de jazz americano: “Eu podia tocar num piano com teclas só brancas ou com teclas só pretas mas vocês não teriam tanto prazer em ouvir-me…”





N.B.: Há cerca de um mês, publiquei um artigo sobre uma situação de miséria envergonhada neste espaço. Fiquei surpreendida e feliz por ver que várias pessoas se mostraram dispostas a dar uma mão para ajudar a resolver esse assunto (de entre vários semelhantes que por aí há). Há mesmo quem goste genuinamente das pessoas sem viver na base da troca.

Friday, September 2, 2011

Apartheid da informação


Já esteve naquela situação em que recebe em casa uma carta de uma entidade pública e não consegue perceber o conteúdo? Não está sozinho. A esmagadora maioria dos portugueses já passou pelo mesmo. Intimações de tribunal ou das Finanças, avisos do Hospital ou da Segurança Social, cartas de conteúdo panfletário ou informativo e até mesmo anúncios de emprego na função pública e contratos bancários deixam a população à toa, em busca de um dicionário. A linguagem em forma de minuta que ali é usada sofre de um gongorismo antiquado, cujas flores e pretensiosismo são até difíceis de entender para quem a redigiu mecanicamente – e a prova é que, desconstruindo alguns desses discursos, verificamos a sua incoerência total quanto ao significado.


Caso esteja a pensar que são apenas os iletrados que têm dificuldade em entender estes documentos de uso comum, pense outra vez. Segundo estudos apresentados pela “Português Claro”, 50% dos portugueses tem dificuldade em entender as bulas dos medicamentos e, logo, não sabe bem como há-de tomar os ditos. Ao que parece, apenas 5% da nossa população consegue lidar bem com documentos novos e de complexidade relativa (manuais de utilização de máquinas, por exemplo). De facto, é complicado para qualquer cidadão entender à primeira frases como a seguinte (retirada de um documento comum de seguro automóvel): “por falecimento da pessoa segura, o capital seguro é prestado, em caso de premuriência do beneficiário relativamente à pessoa segura, aos herdeiros desta; em caso de comuriência da pessoa segura e do beneficiário, aos herdeiros deste”. No entanto, lá vamos engolindo e assinando. Ninguém levanta a voz para dizer “Não percebi…” O mesmo acontece com os discursos de boa parte dos nossos governantes onde as pessoas batem palmas sem ter entendido boa parte da mensagem. É o célebre “Não percebi, mas ele fala muito bem!”


A Português Claro, de onde retirei estas informações, é um projecto que, à semelhança da mais velhinha Plain English Foundation, se dedica a ajudar os organismos e empresas numa simplificação da linguagem adequada à compreensão da maioria dos cidadãos.


Porque são os documentos escritos de forma tão barroca e quase ininteligível? Talvez porque assim o cidadão, atordoado, assina de cruz com vergonha de questionar, perdendo uma boa parte da noção dos seus direitos. O facto é que quem não sabe dos seus direitos também terá dificuldade em compreender os seus deveres, o que arrasta consequências negativas para toda a sociedade.


O abismo que existe entre a literacia dos portugueses e a complexidade dos documentos é grande. Mas educar toda uma sociedade não só demora várias gerações como exige uma reformulação cultural profunda; o mais simples é, efectivamente, optar pela clareza dos discursos e dos documentos. Até porque quanto mais sabemos acerca de um assunto, mais capazes somos de o simplificar e de adaptar o nosso discurso a quem nos ouve. Por mais complexo que seja o tema, o verdadeiro conhecedor deve ser capaz de falar dele com a simplicidade que uma criança exige do mesmo modo que, com cientificidade, faz uma palestra.


No entanto, em Portugal, sofremos do mal oposto. Ao invés de se tentar simplificar a linguagem burocrática e a retórica de bancada para povo entender insiste-se no floreado discursivo, quantas vezes com resultados desastrosos para quem tenta, através desse fraseado pomposo, uma acção de marketing pessoal de sentido eleitoralista ou dominador. Assim, acabamos por ter tristes exemplos de cabeças dirigentes cujo palavreado rebuscado acaba por não fazer sentido algum à luz da análise. Ocorre-me o daquele promissor político açoriano que, questionado sobre a situação que vivemos, afirmou: “Sou a favor dos cortes! Reduções é que nunca!” ou a daquele alto cargo que andou às voltas com um “resumo breve” porque pretendia antes uma “resenha sucinta”. Talvez se ande a precisar de umas lições de português… ou de claridade. Sob risco das anedotas linguísticas passarem a ter como sujeitos outros que não os jogadores de futebol.



A pedido de Sandra Fischer-Martins, da Português Claro, aqui fica o link para a apresentação no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=d4Vl6dPmv0w