... "And now for something completely different" Monty Python

Monday, September 19, 2011

Estrangeiro, olha-te ao espelho


Certa vez, estava eu em França temporariamente a trabalhar com uma amiga quando fomos assaltadas. O que mais nos surpreendeu foi a reacção dos franceses a quem contávamos o sucedido. Todos, sem excepção, abanavam a cabeça e diziam "Este país está cada vez pior. Estamos cheios de árabes /argelinos / marroquinos, turcos, ... Já não se pode andar descansado!" Quando lhes perguntávamos porque é que não punham a hipótese do assalto ter sido feito por um francês - visto não termos visto a cara do assaltante - não havia quem não respondesse que era muito improvável que um verdadeiro francês se dedicasse a actividades criminosas. Um verdadeiro francês, reparem bem! É que existem os que são de mistura, ao estilo cevada para café com leite.

Perante esta reacção tão sentidamente convicta por parte dos nossos colegas parisienses, nenhuma tinha vontade de lhes dizer das suas confusas raízes, mas lá encontrámos coragem para ripostar que também nós éramos, afinal, estrangeiras ali... "Oh, mas isso é completamente diferente, minhas queridas! Vocês não estão aqui a morar!" Portanto, o problema não era ser estrangeiro em França. Era sê-lo e ter a intenção de assentar lá arraiais. O nosso trabalho (muito) temporário não incomodava ninguém, não mexia com as mentalidades, as economias, as demografias, não tirava nem dava nada à França, excepto um par de turistas a mais que - quando muito - acrescentava colorido e produzia sensação em meia dúzia de bons patriotes.

O interessante desta pequena história é que, há algum tempo atrás, acompanhei com esta amiga uns turistas cá nas ilhas. A certa altura, ela advertiu-os sobre não deixarem as malas à vista quando saíssem do carro e, perante o espanto deles porque consideravam as ilhas paraísos sem crime, ela, muito naturalmente, disse que já tinham sido assim paradisíacas mas que depois tínhamos recebido grande vaga de imigrantes e de retornados e, logo, o crime tinha aumentado e "isto nunca mais tinha sido a mesma coisa!" Não perdi a oportunidade de lhe dizer que ela estava a agir tal qual como os nossos amigos parisienses que tanto a tinham chocado na época com as suas afirmações xenófobas. Com aquela expressão de quem foi apanhado em falta, ela disse-me que nem se tinha dado conta disso. "Talvez tu te dês mais conta destes pormenores, porque andaste imigrada... Nós dizemos isto por instinto; não é por mal", justificou.

Não quero trazer aqui à discussão as variadas teorias psico-sociológicas sobre O Outro e a nossa relação com ele. As teorias existem em calhamaços, são discutidas em academias e congressos, mas a prática é tão velha como o mundo com humanos dentro. Os homens criam tribos, as tribos ficam definidas por espaços territoriais e a sobrevivência da tribo passa pela defesa desse espaço (não só mas também) face a outras tribos. O medo do Outro e a ignorância do que ele é justificavam as atitudes de repulsa e até de ataque. A evolução humana trouxe o conceito de "extraneus" - em latim, "estranho" e "estrangeiro" sendo uma e a mesma coisa, o que ainda subsiste em castelhano. Faz sentido. Se em português, "estranho" e "estrangeiro" são hoje coisas diversas, não se apresentam totalmente distintas dentro das nossas cabeças. Pena é que não tenhamos também herdado e mantido até hoje das civilizações antigas que nos fizeram berço o seu extremamente prezado conceito de hospitabilidade, cuja ética levava a tratar com cortesia qualquer "estranho" que entrasse no nosso território em busca de abrigo. Pelo menos, até que o “estranho” provasse ser inimigo. Pois “estranhos”, uns para os outros, nunca deixaremos de ser e isso dá muito mais musicalidade à vida. Como dizia certo músico de jazz americano: “Eu podia tocar num piano com teclas só brancas ou com teclas só pretas mas vocês não teriam tanto prazer em ouvir-me…”





N.B.: Há cerca de um mês, publiquei um artigo sobre uma situação de miséria envergonhada neste espaço. Fiquei surpreendida e feliz por ver que várias pessoas se mostraram dispostas a dar uma mão para ajudar a resolver esse assunto (de entre vários semelhantes que por aí há). Há mesmo quem goste genuinamente das pessoas sem viver na base da troca.