“A tendência do indivíduo médio é para
regredir emocionalmente assim que se torna membro de um grupo” disse Scott
Peck, médico ao serviço do Exército Americano durante a Guerra do Vietname. Nos
seus escritos sobre o massacre de civis em Mylai pelas forças do batalhão
americano “Charlie”, Peck começa por considerar os factos: os civis eram
sobretudo crianças, mulheres e idosos; os soldados que puxaram das armas não
terão sido mais de 50 (os restantes 200 terão assistido ao massacre sem o
tentar impedir); no ano seguinte ao crime, ninguém na Força de Comando Especial
ignorava as atrocidades cometidas e ninguém (sublinhe-se, ninguém) as revelou.
O crime só se tornou público porque um ex-militar (não pertencente à Força, mas
que ouvira o relato por via de um amigo) escreveu uma carta ao Congresso Americano
que, como tal, foi compelido a agir.
A complexidade do acontecimento não cabe
numa crónica, muito menos a ramificação mental de fragmentação da consciência
que ocorreu num grupo de homens convencidos de que massacrar inocentes não só
não era crime como era um dever patriótico à causa grupal a que esse Outro se
opunha pela sua existência de pertencente a um grupo que não o seu. Não
confessaram porque, no seu distorcido esquema mental, não havia culpa a registar,
mas sim o cumprimento de um dever.
Mas os restantes? Porque não falaram de
Mylai? Primeiramente, por cobardia. Esses sentiam a culpa do sucedido e sabiam
que os esperava uma lei marcial se o acontecimento fosse descoberto (encobrir
um crime constitui crime em tempo de guerra). Segundo, por anestesia psíquica,
um conhecido fenómeno de quem sobreviveu a situações de stress intenso e
prolongado: após algum tempo em condições sub-humanas, as defesas emergem e o
ser humano protege-se pela anestesia de emoções, i.e. o que antes o perturbava
deixa de ser relevante (exemplo extremo: se antes o horrorizava ver queimar
corpos, passada uma semana é ele mesmo que os atira para a fogueira se entender
que de tal depende a sua sobrevivência, ainda que seja apenas a sobrevivência social).
Em terceiro lugar, por imaturidade emocional – aqui, seria necessário explanar
o modo como se escolhem os indivíduos para pertencer a um determinado grupo e
porque é que alguém é “cão de caça” ao invés de “caçador”. Regra geral,
soldados têm personalidades influenciáveis, dependentes e descontroladamente
agressivas, servindo para a linha da frente, enquanto oficiais fazem lavagens
de cérebro, usam de frieza e maquiavelismo e jamais se colocariam em situações
de perigo. Qual deles o mais perigoso? E o mais culpado?
Os seguidores de Hitler estavam
convencidos que a purificação da raça não era um pecado… era um dever para com
os humanos e o mundo. Já para o esquemático Hitler, a convicção era outra: a
sua questão pessoal encontrou um escape na matança e, adicionalmente, o seu ego
ficou satisfeito por encontrar uma multidão de seguidores que, ainda que não
pela mesma razão, o apoiavam.
Uma das formas mais seguras de fomentar
o ódio contra o Outro é convencer “soldados” de que fazem parte de um grupo,
coeso e orgulhoso, sendo o Outro uma ameaça (este simples esquema funciona nos
jogos de futebol, na política e até nas reuniões internacionais). De acordo com
todas as teorias sobre as tribos, tenhamos em conta que se um indivíduo não
tolera bem a crítica nem o falhanço, um grupo – ferido no seu orgulho ou em
risco de queda – é triplamente mais rancoroso e perverso nos seus ataques de narcisismo
e de (suposta) defesa exacerbada.
Resta uma questão: e a opinião pública?
Ao saber de Mylai, ao saber de “n” atrocidades, porque não se manifesta? Porque
dizemos “não é comigo” e desresponzabilizamos as questões, empurrando para o
patrão, o vizinho, o Governo ou os especialistas? Porque é que nunca sabemos de
nada nem queremos confusões com ninguém? Não será pelas mesmas razões -
inércia, cobardia, protecção da própria pele, anestesia de grau elevado?
Existe uma velha expressão judaica da
Ética dos Pais que vos deixo aqui “se não eu para mim, quem para mim? E quando
eu sou só para mim, quem sou eu? E se não agora, quando?”