... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, April 13, 2012

Responsabilidade



“A tendência do indivíduo médio é para regredir emocionalmente assim que se torna membro de um grupo” disse Scott Peck, médico ao serviço do Exército Americano durante a Guerra do Vietname. Nos seus escritos sobre o massacre de civis em Mylai pelas forças do batalhão americano “Charlie”, Peck começa por considerar os factos: os civis eram sobretudo crianças, mulheres e idosos; os soldados que puxaram das armas não terão sido mais de 50 (os restantes 200 terão assistido ao massacre sem o tentar impedir); no ano seguinte ao crime, ninguém na Força de Comando Especial ignorava as atrocidades cometidas e ninguém (sublinhe-se, ninguém) as revelou. O crime só se tornou público porque um ex-militar (não pertencente à Força, mas que ouvira o relato por via de um amigo) escreveu uma carta ao Congresso Americano que, como tal, foi compelido a agir.

A complexidade do acontecimento não cabe numa crónica, muito menos a ramificação mental de fragmentação da consciência que ocorreu num grupo de homens convencidos de que massacrar inocentes não só não era crime como era um dever patriótico à causa grupal a que esse Outro se opunha pela sua existência de pertencente a um grupo que não o seu. Não confessaram porque, no seu distorcido esquema mental, não havia culpa a registar, mas sim o cumprimento de um dever.  

Mas os restantes? Porque não falaram de Mylai? Primeiramente, por cobardia. Esses sentiam a culpa do sucedido e sabiam que os esperava uma lei marcial se o acontecimento fosse descoberto (encobrir um crime constitui crime em tempo de guerra). Segundo, por anestesia psíquica, um conhecido fenómeno de quem sobreviveu a situações de stress intenso e prolongado: após algum tempo em condições sub-humanas, as defesas emergem e o ser humano protege-se pela anestesia de emoções, i.e. o que antes o perturbava deixa de ser relevante (exemplo extremo: se antes o horrorizava ver queimar corpos, passada uma semana é ele mesmo que os atira para a fogueira se entender que de tal depende a sua sobrevivência, ainda que seja apenas a sobrevivência social). Em terceiro lugar, por imaturidade emocional – aqui, seria necessário explanar o modo como se escolhem os indivíduos para pertencer a um determinado grupo e porque é que alguém é “cão de caça” ao invés de “caçador”. Regra geral, soldados têm personalidades influenciáveis, dependentes e descontroladamente agressivas, servindo para a linha da frente, enquanto oficiais fazem lavagens de cérebro, usam de frieza e maquiavelismo e jamais se colocariam em situações de perigo. Qual deles o mais perigoso? E o mais culpado?

Os seguidores de Hitler estavam convencidos que a purificação da raça não era um pecado… era um dever para com os humanos e o mundo. Já para o esquemático Hitler, a convicção era outra: a sua questão pessoal encontrou um escape na matança e, adicionalmente, o seu ego ficou satisfeito por encontrar uma multidão de seguidores que, ainda que não pela mesma razão, o apoiavam.

Uma das formas mais seguras de fomentar o ódio contra o Outro é convencer “soldados” de que fazem parte de um grupo, coeso e orgulhoso, sendo o Outro uma ameaça (este simples esquema funciona nos jogos de futebol, na política e até nas reuniões internacionais). De acordo com todas as teorias sobre as tribos, tenhamos em conta que se um indivíduo não tolera bem a crítica nem o falhanço, um grupo – ferido no seu orgulho ou em risco de queda – é triplamente mais rancoroso e perverso nos seus ataques de narcisismo e de (suposta) defesa exacerbada.

Resta uma questão: e a opinião pública? Ao saber de Mylai, ao saber de “n” atrocidades, porque não se manifesta? Porque dizemos “não é comigo” e desresponzabilizamos as questões, empurrando para o patrão, o vizinho, o Governo ou os especialistas? Porque é que nunca sabemos de nada nem queremos confusões com ninguém? Não será pelas mesmas razões - inércia, cobardia, protecção da própria pele, anestesia de grau elevado?

Existe uma velha expressão judaica da Ética dos Pais que vos deixo aqui “se não eu para mim, quem para mim? E quando eu sou só para mim, quem sou eu? E se não agora, quando?”