... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, November 23, 2012

Varandas de Pilatos


O que se segue é uma história verídica. Não revelo nomes, pelo que não cometo indiscrições. Mas não podia deixar de a contar, já que uma das principais razões pelas quais o mundo não avança é a tendência que todos temos de olhar apenas para os nossos problemas. 

Uma jovem ficou com uma equimose no olho em resultado de uma briga com o namorado. Não se pode dizer que foi surpreendente; afinal, o rapaz mudava de temperamento com frequência e ora era muito romântico ora se exaltava ao ponto de pontapés. De qualquer forma, o ponto desta história não é julgar este relacionamento; para isso, não faltam alguns teorizadores da violência que até garantem transformar um abusador num companheiro em 15 epifânicas sessões de mudança comportamental.

O ponto desta história é que, no dia do “olho negro”, esta jovem disse “basta” e foi ao hospital. Teve sorte – ou não – e “apanhou” a sua médica habitual, a quem contou o sucedido. Quando uma vítima de violência decide contar o que se passa podemos não só admitir que os factos já acontecem há algum tempo como também temos de ter em conta que foi preciso ultrapassar muitos sentimentos íntimos para fazer a revelação, entre eles medo e vergonha. É à conta do pudor que se sente em contar coisas tão humilhantes e do receio de que possa acontecer algo pior caso o abusador venha a saber da revelação que a indecisão em contar se mantém por tanto tempo. É neste silêncio que confiam todos os que violentam outras pessoas. É neste mesmo tipo de silêncio que confiam os que abusam de crianças (mas esses inventam ainda a desculpa adicional da “imaginação influenciável do menor”, muito na moda nos tribunais e com uma espantosa aceitação por parte dos decisores).

Não é preciso um doutoramento em Psicologia para chegar à conclusão de que a jovem necessitou de muita força de vontade para falar com a sua médica nesse dia. A Sra Dra, porém, respondeu que tudo o que diziam entre aquelas quatro paredes estava abrangido pelo segredo médico e que não se metia em confusões de namorados, pelo que não podia revelar nada do que lhe estava a ser confiado: “Mas desejo que as coisas se resolvam pelo melhor!” Na cabeça da jovem, a conversa das quatro paredes recordou-lhe um episódio em que também o namorado lhe tinha dito, numa das suas fúrias, “Tudo o que fazemos aqui ninguém sabe lá fora!” e a Sra Dra pareceu-lhe tão ambígua e, de certo modo, tão violenta como ele.

Vejamos: se a menina apenas quisesse falar sobre o pesado assunto mas pedisse à médica que não revelasse nada judicialmente (o que, nestes casos, acontece às vezes, embora isso vos possa parecer paradoxal e até pudesse dividir a médica entre estar ao corrente de um crime público e ter um pedido de segredo) eu entendia perfeitamente que a Sra Dra não falasse, por respeito ao pedido. Mas, neste caso, a menina pediu socorro, pediu que fosse relatado o acto. É um chocante conveniente lavar de mãos desta médica, que, ademais, não põe em causa a veracidade do testemunho.

O que eu espero, por mero acaso, é que a Sra Dra esteja agora a ler o jornal, talvez à mesa do pequeno almoço, confortavelmente. E agora, páre, se faz favor. Repare nos seus filhos, moldados pelas suas acções. Olhe para a sua filha adolescente. Imagine-a com um olho negro. E agora, levante-se, vá para o Hospital, vista a bata e faça a sua vida… como habitualmente. Lave as mãos como se nada fosse. 

Sunday, November 11, 2012

What Makes Açores Look Like Açores?



Na última edição do Fazendo, o Tomás Melo escreveu um texto chamado What makes Açores look like Açores? A pergunta é mais provocatória do que parece! Foi assim que nos surgiu a ideia de tentar saber o que torna os Açores únicos. A busca há-de continuar nas próximas edições do Fazendo. Para já, aqui ficam as respostas a essa pergunta de alguns estrangeiros que moraram ou moram nos Açores. Iniciámos a “busca” com estrangeiros porque nada mais claro do que o olhar de quem aqui chega e se encanta (ou não…) De propósito, escolhemos pessoas muito diferentes umas das outras. E, afinal, o que torna os Açores especiais não é tão óbvio como se possa pensar!



Eleni Kouris (grega, empresária, vive nos Açores)
O oceano que rodeia os Açores dá-nos uma mensagem de tranquilidade mesmo no Inverno; é selvagem e encantador! Quando, de manhã, passamos pela via rápida e vemos os pastos e colinas verdes cheios de vacas, lembramo-nos que há um Deus e que existe mais vida para além dos nossos dramas diários. O problema é que os estrangeiros não são muito bem aceites porque a sociedade é muito fechada, e isso faz com que a ilha se torne um pouco triste e melancólica!



Tom Quilty (inglês, consultor, viveu nos Açores)
É um sítio tão absolutamente diferente. A simpatia das pessoas, a topografia da terra, a geografia das nove ilhas e a possibilidade de poder escapar totalmente da vida citadina. Além disso, penso que o facto de sabermos que estamos tão longe de uma plataforma continental tanto a este como a oeste faz com que nos sintamos mais separados de tudo, e torna tudo mais remoto e mais excitante.



Cátia Benedetti (italiana, professora e tradutora, vive nos Açores)
Os Açores têm para mim a dimensão social certa: uma comunidade humana em que nem todos se conhecem, mas uma proximidade que nos protege das solidões metropolitanas. Nem o sufoco dos grupos fechados, nem o anonimato que nos nega o ser. Aqui todos, afinal, viemos de outro sítio qualquer, e longamente descobrimos as nossas histórias, partilhando os destinos, as memórias e o esquecimento. E depois: o mar, obviamente, a luz instável, a vegetação que logo toma conta de qualquer espaço que o homem abandona. Os vulcões, os ventos, os dias serenos e as chuvas torrenciais. Outras tantas lições de relatividade: a noção da impermanência que realça o valor das existências individuais.




François Dalaine (francês, professor, viveu nos Açores)
Paisagens… Pouca gente mas boa gente que nos dá comida e boleia… Estar fechado… O mar, baleias… Fajãs e caminhos… E uma amizade que não se esquece.


Irene Sempere (espanhola, bióloga marinha, viveu nos Açores)
O mar, a vida selvagem, as paisagens, a geotermia, o clima com quatro estações num dia, a vida dos marinheiros que passam e as suas histórias. Os Açores estão longe de ser as únicas ilhas que estão no meio do Atlântico, mas há qualquer coisa de muito diferente num sítio onde há mais vacas do que pessoas.



Eduardo Bettencourt Pinto (angolano, escritor, viveu nos Açores)
Em 2012, já não entro em Ponta Delgada como antigamente: pela Avenida Mónaco abaixo sob uma dança de nuvens, até desembocar emocionado na Rua de Lisboa. Logo a seguir, e voltando à esquerda na Rua da Vila Nova, subir devagar, como quem bebe o passado, até à casa da minha mãe. Agora quando saio do aeroporto, estou numa autoestrada europeia. No entanto, mesmo que perdidas algumas referências, reconheço que estou na ilha e rente aos braços do mar. Não sou objetivo, eu sei. Sou emocional. O amor, um grande amor, tem destas coisas. A verdade, porém, é que os Açores não são apenas as inúmeras vozes dos meus parentes e dos meus mortos. São também esta aliança de luz e sombra, esta catarse, estas lágrimas de pedra que acaricio com o olhar na viagem apaixonada pela cidade, passo a passo, redescobrindo em mim as mais inextricáveis raízes.



Elena Brindani (italiana, pintora, viveu nos Açores)
Os Açores são uma terra de passagem para muitos. Para mim, representam o período em que ganhei a independência verdadeira e só ficando tão longe do meu mundo o podia conseguir. As ilhas ficam impressas na história da minha vida.



Gerbrand Michielsen (holandês, guia de birdwatching, vive nos Açores)
Sempre sonhei viver perto do mar e num sítio onde pudesse apanhar o maior peixe do mundo. Depois fiquei mais velho e o desejo do peixe mudou para o sonho de encontrar o mais raro pássaro vindo do continente americano. As paixões fazem-nos ficar amarrados a um lugar e nem mesmo o maior temporal me podia agora arrancar destes rochedos verdes. A única razão que me permite conseguir viver no meio do oceano é que vivo em nove pequenos mundos e saltar de um deles para os outros permite-me escapar da claustrofobia de cada um.  



Anónima identificada (cidadã de Leste, professora, vive nos Açores)
É um povo com bom coração, caloroso e simpático. Mas, ao mesmo tempo, percebes que afinal é obrigado a ser simpático para sobreviver, é uma questão hipócrita. A “simpatia” alimenta a vida social num meio muito fechado e as pessoas usam isso para nunca serem odiadas pelos outros – é uma forma conveniente de existir. A nível profissional, a vida torna-se muito fácil, porque as pessoas são pouco exigentes, têm poucos objectivos de vida e dão muita “graxa”. Quanto mais vives assim, mais percebes que não é aceitável mas por outro lado já estás adaptado porque se não fizeres o mesmo não sobrevives.
A natureza é óptima.  Mas, culturalmente, faltam um teatro de ópera, um ballet e admiro-me como é possível viver assim… Para mim, este choque cultural foi e é enorme.
Ninguém cumpre prazos nem horários; as reuniões de trabalho não servem para resolver nada, servem para dizer mal de quem não está e concluir que não podemos modificar o estado geral. Mas o lado positivo é que as pessoas têm um grande sentido de humor e divertem-se com tudo.
Resumindo, a característica principal é o isolamento: Açores estão à parte do mundo, separados. Vivemos como que “a fingir”. O que quer que seja que se consiga, o comentário é “está muito bom, assim já é muito bom!” e nada avança para realmente bom. Os Açores são um paradoxo: um paraíso que te permite desligares-te do mundo, mas vivendo sempre dependente dele!



Jorge Bonet (espanhol, biólogo, viveu nos Açores)
São um lugar onde o ritmo de vida é mais lento para que se possa aproveitar a natureza que nos rodeia. Podes aí dar-te conta da imensidade do oceano e das maravilhas que o habitam. Outra coisa interessante destas ilhas é o modo como as tradições e costumes variam de umas para as outras, mesmo no que diz respeito à personalidade – base dos habitantes de cada ilha. Cada ilha é muito singular, embora pertença ao conjunto Açores.
A riqueza dos Açores também se mede pela gastronomia e aí os Açores estão em muito boa posição, porque têm uma excelente variedade culinária.
A nível pessoal, conheci gente incrível. Não os vejo muito, mas continuam a fazer parte da minha vida. Quem vai aos Açores, enamora-se das ilhas e não as pode esquecer.



Emilie Speleman Smith (sueca, empresária, vive nos Açores)
A maneira como o sol torna as casas amarelas durante o amanhecer; as colinas e os picos  verde-profundo; o Ilhéu da Vila; as hortênsias que cobrem a ilha e a fazem tão bonita no Verão… à distância parecem minhocas que se alongam, criando túneis pelas estradas; a cor do oceano.



Davide Alfano (italiano, músico, viveu nos Açores)
O cheiro do mar… a solidão e a imensidade no mesmo instante. Um dia, andando nas ruas de S. Miguel, sentei-me frente ao mar e um senhor começou a falar comigo e disse-me que cada pessoa que de alguma forma na sua vida compartilhou aí um olhar, uma emoção durante um dia ou um ano, ficará para sempre nos Açores. Mas também me disse que nascer e viver nos Açores pode, para muitas pessoas, ser uma limitação… mas na verdade é um privilégio para poucos. O que torna os Açores únicos para mim é que me deram esse privilégio e mudaram a minha vida para sempre.



Sabrina Steinmuller (belga, fotógrafa, viveu nos Açores)
Um pequeno paraíso em pleno oceano Atlântico, onde cada das 9 ilhas é um caleidoscópio de paisagens e gentes com tradições, vivendo em equilibro com uma Natureza muito bela e tão diversa!  

(as fotos que acompanham estas entrevistas são da autoria da própria Sabrina aquando do tempo em que morava nos Açores) 

Friday, November 9, 2012

Quotas e outras coisas do género



Porque trabalho para uma instituição profundamente conectada com os EUA, nas últimas semanas levei um “banho” de eleições presidenciais desse país. À primeira vista, é irrelevante, mas, na verdade, é muito mais importante Obama ser re-eleito do que foi importante ter sido eleito a primeira vez.

Quando Obama foi eleito, ficou sempre no ar a possibilidade de ele ter sido votado não porque trazia melhores políticas, mas sim porque era negro. Por muito que não seja politicamente correcto dizê-lo, a verdade é que todos os grupos que um dia já foram minorias – ou melhor, que um dia já ocuparam posições desfavoráveis na sociedade  e que se encontram, ainda hoje, a tentar justificadamente ganhar a sua posição igualitária – sofrem deste estigma que os anglo-saxões e o seu humor sardónico chamam “discriminação positiva”.  Ou seja, há uma espécie de tratamento preferencial dado àqueles que pertencem a minorias, precisamente porque durante tantos anos foram alvo de uma injusta posição contrária. Esta discriminação positiva existe nalguns empregos, por exemplo – aliás, legalmente, é para isso que servem as perguntas (facultativas) sobre género, etnia e religião que são feitas aquando das candidaturas. O tema é controverso, mas não deixa de ter apoiantes: se há quem advogue que todo o tipo de discriminação é errado, também há quem diga que esta é a única forma de as minorias chegarem ao poder e à igualdade no mundo de hoje, que continua a ser discriminatório. O ponto é que, aquando da primeira candidatura de Obama, não faltou quem dissesse que ele fora eleito devido à vontade de uma larga fatia de americanos quererem um “minoritário” no poder (ou porque eram minorias eles próprios ou porque se sentiam culpados de serem WASP…) É discutível. Indiscutível é que não se pode dizer o mesmo quando esse homem é re-eleito. Uma re-eleição significa sempre o premiar de um trabalho, o renovar de uma confiança.

A dita discrimininação positiva, porém, acontece em quase todo o mundo ocidental. Os inuits canadianos e os aborígenes da Nova Zelândia – ambos casos típicos de minorias severamente maltratadas pelos povos colonizadores – têm uma quota reservada, isto é, um número reservado de lugares no Parlamento. É uma espécie de pagamento pelos males passados – que, aliás, pouco compensa em termos de factuais bens presentes, ao que sei…

Mas não vamos tão longe. A Lei da Paridade em Portugal estabelece que as listas para o Parlamento (Europeu ou da República) e para as Autarquias “são compostas de modo a assegurar a representação mínima de 33% de cada um dos sexos.” Ora, isto, supostamente, vem favorecer a entrada de mulheres na política. Na prática, os partidos procuram incluir nem que seja uma mulher em lugar de destaque, não só por uma questão de agradar ao eleitorado feminino mas até porque já houve multas por não se cumprir esta lei. Mas a questão, quanto a mim e como mulher, é perigosamente discriminatória – ocuparemos lugares de destaque por sermos competentes… ou por sermos mulheres e se verem obrigados a preencher a quota?

Como mulher, continuo a achar que é bem mais fácil triunfar profissionalmente sendo homem. Não tenho dúvidas. Mas recuso uma discriminação positiva pelo facto de ser mulher… Parece-me limitativo da afirmação das minhas qualidades e competências reais.

Aliás, isto recorda-me um episódio da série Yes, Prime Minister em que membros do Governo falavam sobre a tal discriminação positiva e terminavam “Todos concordamos com este princípio fantástico que é ter mulheres a governar! Mas onde as colocamos, Sr. Ministro? Não há nenhum Ministério adequado para um toque feminino…”

A quota não acaba com o preconceito e não será a quota a mudar mentalidades.