... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, March 26, 2020

Covid-19 e Realidade Alternativa


Quem gosta de jogos de computador talvez conheça um jogo de simulação estratégica chamado Plague Inc. O jogador desenvolve um agente biológico patogénico capaz de aniquilar a Humanidade causando uma enfermidade mortífera que alcance o nível de autêntica praga, conforme vai contaminando cada vez mais pessoas de país em país.

Plague Inc não é um jogo desconhecido do grande público. Em minha casa também se joga – não eu, que não percebo nada disso, embora veja os homens da casa furiosamente interessados. Existe desde 2012 enquanto jogo eletrónico e desde 2017 como jogo de tabuleiro, para a malta mais clássica. É um jogo tão interessante que, há um ano atrás, os números da empresa Ndemic Creations (sua criadora) diziam que já vendera 35 mil cópias (versão tabuleiro) enquanto os downloads eletrónicos ultrapassavam os 120 milhões. Mas isso não era nada com o que a Ndemic Creations viria a facturar no início deste ano quando o Plague Inc. se viu no lugar de app mais procurada de sempre por alturas do explodir do COVID-19.

Em Janeiro, os jogadores chineses perceberam que a história do Plague Inc. tinha saído do mundo virtual para o mundo real. Sabendo que o jogo tinha sido cientificamente baseado, tendo por isso ideias fundamentadas sobre como se espalham as doenças contagiosas, o público chinês procurou respostas para a rápida expansão do COVID-19 bem como para a descontinuidade do “bichinho”. O website oficial do jogo foi invadido com perguntas sobre este vírus específico, pelo que os seus criadores tiveram de dizer que não tinham utilizado um modelo científico específico, re- enviando qualquer pergunta para a OMS. De facto, o jogo admite bactérias, vírus, fungos, parasitas, armas químicas e outros, não se limitando a uma só doença, embora o cenário de contágio -praga e de alastramento mundial com fechamento de fronteiras esteja presente. Existem follow-up deste jogo: por exemplo, o Rebel Inc. que fala das implicações políticas deste drama, porque isto de fechar fronteiras não é inocente e traz consequências a vários níveis, desde os nacionalismos à economia.

O pandemónio foi tal (pandemónio e pandemia, curiosamente, são palavras da mesma família linguística) que o Governo da China decidiu proibir o jogo em Fevereiro, retirando-o das App stores. A Administração do CiberEspaço Chinesa – um órgão regulador do espaço internauta; outros dirão órgão de censura e controlo – proibiu mesmo o jogo dizendo que este continha “conteúdo ilegal”. De que tipo? Não foi especificado.

Claro que estas ficções sobre pandemias à escala global não são novidade. Existem muitos filmes e livros: O Planeta dos Macacos; Contágio; Children of Men; Vinte e Oito Dias; Pacific Liner; The Omega Man; Mothers Might Live; etc. Até o próprio “Ensaio sobre a Cegueira” de Saramago não deixa de ser sobre uma misteriosa e galopante epidemia, que deixa todos acometidos de uma misteriosa e súbita cegueira branca.

O que é que todas estas ficções têm em comum? Pânico. De facto, Contágio (filme de 2011) é muito semelhante à ideia do Covid-19, a começar pelo facto de ser um vírus que salta de um animal para uma pessoa inadvertidamente. Não admira, já que o filme foi inspirado pela SARS. O paciente zero de Contágio está na Ásia, onde come carne de porco infectada, porco esse que por sua vez comeu banana que foi tocada por morcegos.

Pânico é o que se vive hoje em dia. Em Taiwan, país vizinho do berço do Covid-19, o número de infectados é residual e apenas se registou uma morte por CoronaVírus. De facto, na Ásia, fora da China, apenas a Coreia do Sul conta com número substancial de casos, e ainda assim números muito inferiores ao Irão, que – por sua vez – tem números muito inferiores à Itália. Por outro lado, é importante fazer o balanço entre o número da população e o número de infectados: visto desta forma verificamos que o real drama, exceptuando a China, é, sem dúvida, na Europa.

Recentemente, em Taiwan, uma equipa de cientistas da Academia Sinica desenvolveu os anticorpos que identificam a proteína causadora do Covid-19. No entanto, continuamos sem saber de onde veio o vírus ao certo, já que ninguém avança taxativamente com a ideia do morcego. No mínimo, intrigante… Foi identificada a fonte, mas não o reservatório dessa fonte.

Os amantes de teorias da conspiração podem dizer: alguém viu Contágio ou alguém andou a jogar Plague Inc. e decidiu experimentar na vida real. Quem sabe? Eu não. Nada entendo de bioquímica nem de laboratórios. Além disso, não sei jogar vídeo jogos. Mas uma coisa sei: jogar com o pânico das pessoas é fácil. Basta fazer constar que há perigo em X, identificar a variável X como o que mais nos interessar e ir alastrando a coisa com manipulação. Só há algo que alastra mais que um vírus. Esse algo é o medo.

Friday, March 13, 2020

Igualdade?

Foto: Vídeo Oficial de "Aïcha" (Canção de 1996 de Khaled)
O Gender Social Norms Index (GSNI) é um índice criado pelas Nações Unidas para medir o quanto as crenças sociais obstruem (ou não) a igualdade entre géneros no trabalho, na educação, na política, nas relações enfim. Recolhe dados de 75 países, correspondentes a 80% da população mundial – porque há países mais povoados que outros.
Saíu agora fresquinho um novo relatório do GSNI, o que equivale a ser um relatório com o selo das Nações Unidas. A conclusão mais básica e sumarizada é esta: mais de 90% dos sujeitos inquiridos (homens e mulheres) demonstram sentimentos de preconceito em relação às mulheres. Ou seja, os homens em relação às mulheres e as mulheres em relação a todas as outras mulheres (porque estas cabeças naturalmente devem ter feito uma dissonância cognitiva, retirando-se do seu papel e transformando-se subitamente em julgadoras de “todas as outras, essas galdérias, menos eu que sou séria”, acção não incomum que se vê no teatro desta vida).
Noventa e um por cento dos homens e oitenta e seis por cento das mulheres demonstraram um nível claro de preconceitos em questões tão directas como: Os homens são ou não melhores líderes políticos que as mulheres? As mulheres têm ou não os mesmos direitos que os homens? A educação universitária é mais importante para um homem do que para uma mulher? Os homens têm mais direito ao exercício de uma profissão do que as mulheres? Os homens são melhores executivos de negócios do que as mulheres? Quem detém a autoridade quanto a direitos reprodutivos? Algum deles pode ter direito a exercer violência íntima sobre o parceiro?
Parecem – e são – questões de tão óbvia resposta para gente civilizada em sociedades que se dizem igualitárias. Estas sociedades em que vivemos que dizem que não vale a pena existir movimentos de luta pela igualdade de direitos das mulheres porque isso é conceito que há muito se alcançou. Estas sociedades em que se reclama que a liberdade feminina é um dado absolutamente adquirido, não vale a pena falar disso. Estas sociedades que dizem que as mulheres não só se protegem umas às outras, por fraternidade extensa numa espécie de fenómeno protector do género, como até têm um código de discriminação positiva. Afinal, parece que as ditas sociedades modernas e civilizadas andaram a vender-nos fake news. Talvez com a intenção que nos deixássemos de preocupar com este dilema? Talvez com a intenção que fossemos resvalando para a opinião diversa da tal falsa discriminação positiva? O certo é que este relatório demonstra o que as feministas (palavra que hoje quase se tornou insulto!) há muito vinham dizendo: as mulheres estão na mó de baixo. Aquilo que se pensa delas é pobre, preconceituoso e infeliz.
Por exemplo, metade das pessoas acredita que os homens são melhores líderes políticos, e 40% pensa que são também melhores nos negócios. Um espantoso (ou talvez não) 30% afirmou ser aceitável que um homem batesse numa mulher caso mantivessem um relacionamento amoroso.
Se é verdade que os homens ainda são os que têm maior preconceito em relação às mulheres, a verdade é que as mulheres perpetuam (e muito) esses mesmos preconceitos em relação ao seu próprio sexo, não ficando a estatística muito aquém da dos homens. Para piorar o quadro, os estereótipos de preconceito parecem estar a piorar (e não o inverso… ou seja, a sociedade é hoje mais cruel em relação à visão que tem das mulheres do que já foi!). Assim, os dados de 2004 eram mais promissores em relação a uma igualdade entre os sexos do que os dados de hoje em dia. Razões? Não sabemos. Mas suspeito que as tais “fake news” e uma “suposta sociedade igualitária” que nos vendem e que não temos de todo é capaz de ter contribuído para que, subitamente, tenha havido uns revoltados de plantão e umas revoltadas que lhes querem agradar como os responsáveis por uma rede maior de preconceito e desnível.
Nesta semana de Dia Internacional da Mulher, relembro sempre uma canção franco-algeriana da minha adolescência, em que um homem professa a sua grande paixão a uma mulher que ele considera distante como uma rainha e digna do mais rico e belo. Khaled, o cantor, oferece a Aïcha (nome de mulher e da canção) jóias, poemas, frutas raras, músicas, o sol, países, toda a sua vida. Ela responde: “Guarda os teus tesouros. Valho mais do que tudo isso. Grades são grades mesmo quando feitas de ouro. Quero os mesmos direitos que tu. E também [quero] respeito, em cada dia. Quero apenas amor.” Vinte  e cinco anos depois, Aïcha ainda é actual.
Nota: Este texto foi publicado no Dia Internacional da Mulher com o título "Tudo é para ti!"