Hesitei em escrever sobre este tema e só me decidi quando li duas crónicas
de opinião sobre o mesmo, uma aqui neste jornal e outra num media nacional. Foi
um grande acaso porque não costumo ler crónicas de opinião – “em casa de
sapateiro toda a gente anda descalço!” A razão pela qual eu não queria escrever
sobre o caso de Valentina é que os graves maus tratos a crianças me tocam particularmente
(não chocam, porque sei do que a casa gasta; tocam, que é um verbo diferente de
sensibilidade); a razão pela qual escrevo é que esta mania de encomendar a
criança a N. Sra. de Fátima, colocar as culpas na madrasta má, e dormir sobre
mais uma tragédia após estes escritos de bênção, me perturba um nível acima do
caso.
A capacidade de análise do ser humano médio é fraca. Mas isso não perdoa
certos exercícios que ficam a dever muito à lógica, porquanto nem sequer a
chegaram a utilizar. Dentro deste espírito, vou tecer algumas considerações.
Primeiro, culpar a madrasta e ilibar o pai, dizendo que todos os padrastos
e madrastas não têm amor às crianças, é um caminho tão fácil quando falso. É
realmente falho de sentido levantar o estandarte do amor biológico familiar
usando como exemplo um caso em que o pai biológico de uma criança a torturou
com água quente, a asfixiou e lhe bateu até lhe causar convulsões, deixando-a
depois a agonizar no sofá 13 horas até que esta falecesse. Realmente, o amor
de(ste) pai recomenda-se. O da mãe da Valentina não sei, mas o facto é que a
criança já tinha fugido de casa do pai, e certamente não o fez por ser bem
tratada e estar feliz; uma mãe atenta não a deixaria voltar, sem ao menos
telefonar constantemente. Algo que sempre me fez impressão neste caso foi
voluntariar-se uma vila inteira para andar dias à procura da criança
supostamente desaparecida, enquanto as respectivas famílias (pai, madrasta,
mãe, namorado da mãe) ficavam em suas casas. Enfim, o caso não se prende com
serem familiares de sangue ou de afecto; o caso prende-se antes com esta triste
realidade: amor à Valentina não havia. Obviamente, a madrasta que compactua com
o crime é criminosa. Mas não é a única. O problema é que custa muito ao ser
conservador, amigo dos ditos bons costumes, entender que dentro da família
tradicional tanto pode existir amor como falta dele e que a biologia humana não
garante carinho. Aliás, para algumas pessoas dadas ao abuso de poder, a
proximidade constante e disponível de um ser frágil e incapaz de se defender
como uma criança a quem a biologia concede plenos poderes visto serem seus
progenitores nada mais faz do que exacerbar a violência que sobre ela podem
exercer – e exercem, como mais uma vez, neste caso, se viu!
As desculpas do progenitor não merecem escuta porque não há razão que
justifique isto. A menina sofria abusos sexuais? Posso garantir que nenhum
progenitor confrontado com o horror que é saber que um filho sofre abusos lhe
tenta arrancar pormenores torturando a criança. A menina tinha brincadeiras de
índole sexual com colegas de escola? Nenhum progenitor a tenta matar por isso.
O pai tinha problemas psiquiátricos? Curiosamente, só se manifestaram na forma
de tortura e morte desta filha; e já agora porque teve ela de pagar por isso?
Esta brincadeira de inventar doenças do foro mental para desculpar o
indesculpável é uma artimanha de advogados que defendem sempre o mesmo perfil
de cliente. Não raro me interrogo se estes tipos que torturam menores têm uma
base de dados de advogados sem carácter, já que são sempre os mesmos.
Finalmente, respeito imensamente a religião de cada um tal como respeito
imensamente quem decidiu não ter nenhuma. Mas este croniquismo que propõe
iluminar a alma, o destino além-vida da menina Valentina com imagens de Fátima para
lhe dar amparo só me traz confusão e revolta. Apetece perguntar qual a lógica
que uma entidade divina vê em deixar torturar uma criança em vida para a
iluminar depois. Que pecados teria essa criança para sofrer dessa maneira, na
óptica destes escribas? Enfim, nem eles sabem responder, porque o dogma se
sobrepõe a qualquer questão, e nem percebem que com tais palavras insultam o
poder absoluto de bem fazer que atribuem à sua divindade.
Gostava de acreditar que aprendemos alguma coisa com este caso, mas penso
que não. Há muitas Valentinas a sofrerem, umas sobrevivem com fortes cicatrizes,
outras têm menos sorte. Certo é que os criminosos das Valentinas lá vão
continuando as suas vidas. Por muito que custe aos escribas amigos da “moral de
fachada”, nem sempre a família é o melhor do mundo.