... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, May 22, 2020

Sem capa de açúcar


Hesitei em escrever sobre este tema e só me decidi quando li duas crónicas de opinião sobre o mesmo, uma aqui neste jornal e outra num media nacional. Foi um grande acaso porque não costumo ler crónicas de opinião – “em casa de sapateiro toda a gente anda descalço!” A razão pela qual eu não queria escrever sobre o caso de Valentina é que os graves maus tratos a crianças me tocam particularmente (não chocam, porque sei do que a casa gasta; tocam, que é um verbo diferente de sensibilidade); a razão pela qual escrevo é que esta mania de encomendar a criança a N. Sra. de Fátima, colocar as culpas na madrasta má, e dormir sobre mais uma tragédia após estes escritos de bênção, me perturba um nível acima do caso.

A capacidade de análise do ser humano médio é fraca. Mas isso não perdoa certos exercícios que ficam a dever muito à lógica, porquanto nem sequer a chegaram a utilizar. Dentro deste espírito, vou tecer algumas considerações.

Primeiro, culpar a madrasta e ilibar o pai, dizendo que todos os padrastos e madrastas não têm amor às crianças, é um caminho tão fácil quando falso. É realmente falho de sentido levantar o estandarte do amor biológico familiar usando como exemplo um caso em que o pai biológico de uma criança a torturou com água quente, a asfixiou e lhe bateu até lhe causar convulsões, deixando-a depois a agonizar no sofá 13 horas até que esta falecesse. Realmente, o amor de(ste) pai recomenda-se. O da mãe da Valentina não sei, mas o facto é que a criança já tinha fugido de casa do pai, e certamente não o fez por ser bem tratada e estar feliz; uma mãe atenta não a deixaria voltar, sem ao menos telefonar constantemente. Algo que sempre me fez impressão neste caso foi voluntariar-se uma vila inteira para andar dias à procura da criança supostamente desaparecida, enquanto as respectivas famílias (pai, madrasta, mãe, namorado da mãe) ficavam em suas casas. Enfim, o caso não se prende com serem familiares de sangue ou de afecto; o caso prende-se antes com esta triste realidade: amor à Valentina não havia. Obviamente, a madrasta que compactua com o crime é criminosa. Mas não é a única. O problema é que custa muito ao ser conservador, amigo dos ditos bons costumes, entender que dentro da família tradicional tanto pode existir amor como falta dele e que a biologia humana não garante carinho. Aliás, para algumas pessoas dadas ao abuso de poder, a proximidade constante e disponível de um ser frágil e incapaz de se defender como uma criança a quem a biologia concede plenos poderes visto serem seus progenitores nada mais faz do que exacerbar a violência que sobre ela podem exercer – e exercem, como mais uma vez, neste caso, se viu!

As desculpas do progenitor não merecem escuta porque não há razão que justifique isto. A menina sofria abusos sexuais? Posso garantir que nenhum progenitor confrontado com o horror que é saber que um filho sofre abusos lhe tenta arrancar pormenores torturando a criança. A menina tinha brincadeiras de índole sexual com colegas de escola? Nenhum progenitor a tenta matar por isso. O pai tinha problemas psiquiátricos? Curiosamente, só se manifestaram na forma de tortura e morte desta filha; e já agora porque teve ela de pagar por isso? Esta brincadeira de inventar doenças do foro mental para desculpar o indesculpável é uma artimanha de advogados que defendem sempre o mesmo perfil de cliente. Não raro me interrogo se estes tipos que torturam menores têm uma base de dados de advogados sem carácter, já que são sempre os mesmos.

Finalmente, respeito imensamente a religião de cada um tal como respeito imensamente quem decidiu não ter nenhuma. Mas este croniquismo que propõe iluminar a alma, o destino além-vida da menina Valentina com imagens de Fátima para lhe dar amparo só me traz confusão e revolta. Apetece perguntar qual a lógica que uma entidade divina vê em deixar torturar uma criança em vida para a iluminar depois. Que pecados teria essa criança para sofrer dessa maneira, na óptica destes escribas? Enfim, nem eles sabem responder, porque o dogma se sobrepõe a qualquer questão, e nem percebem que com tais palavras insultam o poder absoluto de bem fazer que atribuem à sua divindade.

Gostava de acreditar que aprendemos alguma coisa com este caso, mas penso que não. Há muitas Valentinas a sofrerem, umas sobrevivem com fortes cicatrizes, outras têm menos sorte. Certo é que os criminosos das Valentinas lá vão continuando as suas vidas. Por muito que custe aos escribas amigos da “moral de fachada”, nem sempre a família é o melhor do mundo.


Thursday, May 7, 2020

Encosta-te a mim... mas não muito


Um dos efeitos da quarentena é o drama mental que a condição arrasta consigo. Confinamento forçado traz aquilo a que os anglo-saxónicos chamam “cabin fever”, uma condição psicológica real que advém de estar fechado em casa. É de dar em doido. Vejam o filme “The Shining” onde a coisa chega ao extremo. Mas não se assustem, nem todos pegam num machado para cortar a família aos bocados. Para isso, já é preciso personalidade de psicopata.

Estar fechado em casa com a família implica termos de conviver 24/7 com seres que antes víamos apenas algumas horas por dia. Uma pessoa queixava-se de não ter tempo para a família; depois fica sufocado de os ver. Sejamos sinceros: é bem mais fácil manter um casamento quando as pessoas vão trabalhar todo o dia, depois lufa-lufa de jantar, tratar dos miúdos, banho, chega para lá, sono. A rotina estraga a paixão, é certo… mas ajuda a manter os hábitos. O casamento, enquanto contrato, tem muito de hábito. Não é por acaso que as taxas de divórcio sobem escandalosamente após as férias de Verão e a época do Natal. Aliás, já escrevi sobre isto (não neste jornal), referindo que o casal passa a vida a fugir um ao outro com desculpas socialmente aceitáveis e imensamente produtivas. Acontece que a própria sociedade obriga de vez em quando a um compasso de “festas de família” e de “Verão familiar” onde as pessoas experientes procuram logo outro ambiente e outros metem-se na casa dos avós, porque se a coisa correr mal podem desculpar-se com o stress de “aturar os teus pais traz sempre problemas”. Nessas épocas, as famílias são “obrigadas” a conviver e o casal, que antes ia empurrando a sensaboria de já não ter paciência para se aturar com desculpas sobre os seus problemas serem a rotina, os filhos e o trabalho e coisas que tudo tinham a ver com os outros e nada a ver com eles ou a sua relação, vê-se confrontado com a difícil tristeza que é admitir que afinal não, afinal estando todo o dia juntos não há paciência para aturar a cara-metade. Mas qual metade? Ninguém suporta partidos, eu cá sou inteiro.

Logo, seguindo a mesma lógica, estas “férias forçadas”, para mais confinadas a um território restrito e conhecido como é a casa só podiam dar barraca para muito casal. Não é surpresa que a taxa de divórcios na China tenha aumentado exponencialmente após a quarentena ter terminado. Os cartórios oficiais de registos de divórcios abriram em março e logo nesse mesmo dia se registaram números elevados de pedidos. Porém, já antes, os escritórios de advogados se viram atafulhados de acordos de divórcios desde meio da quarentena. Para melhor compreender isto, é necessário ter em conta que falamos de um território severamente tradicional, onde o divórcio é mal visto pela sociedade e onde as pessoas pensam mil vezes antes de se divorciar devido ao estigma que ser divorciado ainda acarreta, perante a família, perante a comunidade e até perante a imagem que têm de si próprios.

Conclusão: eu não sei se o provérbio costumeiro “longe da vista, longe do coração” é certo… mas o que ficou provado é que “muito perto durante muito tempo” enjoa e não é pouco.