... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, May 7, 2020

Encosta-te a mim... mas não muito


Um dos efeitos da quarentena é o drama mental que a condição arrasta consigo. Confinamento forçado traz aquilo a que os anglo-saxónicos chamam “cabin fever”, uma condição psicológica real que advém de estar fechado em casa. É de dar em doido. Vejam o filme “The Shining” onde a coisa chega ao extremo. Mas não se assustem, nem todos pegam num machado para cortar a família aos bocados. Para isso, já é preciso personalidade de psicopata.

Estar fechado em casa com a família implica termos de conviver 24/7 com seres que antes víamos apenas algumas horas por dia. Uma pessoa queixava-se de não ter tempo para a família; depois fica sufocado de os ver. Sejamos sinceros: é bem mais fácil manter um casamento quando as pessoas vão trabalhar todo o dia, depois lufa-lufa de jantar, tratar dos miúdos, banho, chega para lá, sono. A rotina estraga a paixão, é certo… mas ajuda a manter os hábitos. O casamento, enquanto contrato, tem muito de hábito. Não é por acaso que as taxas de divórcio sobem escandalosamente após as férias de Verão e a época do Natal. Aliás, já escrevi sobre isto (não neste jornal), referindo que o casal passa a vida a fugir um ao outro com desculpas socialmente aceitáveis e imensamente produtivas. Acontece que a própria sociedade obriga de vez em quando a um compasso de “festas de família” e de “Verão familiar” onde as pessoas experientes procuram logo outro ambiente e outros metem-se na casa dos avós, porque se a coisa correr mal podem desculpar-se com o stress de “aturar os teus pais traz sempre problemas”. Nessas épocas, as famílias são “obrigadas” a conviver e o casal, que antes ia empurrando a sensaboria de já não ter paciência para se aturar com desculpas sobre os seus problemas serem a rotina, os filhos e o trabalho e coisas que tudo tinham a ver com os outros e nada a ver com eles ou a sua relação, vê-se confrontado com a difícil tristeza que é admitir que afinal não, afinal estando todo o dia juntos não há paciência para aturar a cara-metade. Mas qual metade? Ninguém suporta partidos, eu cá sou inteiro.

Logo, seguindo a mesma lógica, estas “férias forçadas”, para mais confinadas a um território restrito e conhecido como é a casa só podiam dar barraca para muito casal. Não é surpresa que a taxa de divórcios na China tenha aumentado exponencialmente após a quarentena ter terminado. Os cartórios oficiais de registos de divórcios abriram em março e logo nesse mesmo dia se registaram números elevados de pedidos. Porém, já antes, os escritórios de advogados se viram atafulhados de acordos de divórcios desde meio da quarentena. Para melhor compreender isto, é necessário ter em conta que falamos de um território severamente tradicional, onde o divórcio é mal visto pela sociedade e onde as pessoas pensam mil vezes antes de se divorciar devido ao estigma que ser divorciado ainda acarreta, perante a família, perante a comunidade e até perante a imagem que têm de si próprios.

Conclusão: eu não sei se o provérbio costumeiro “longe da vista, longe do coração” é certo… mas o que ficou provado é que “muito perto durante muito tempo” enjoa e não é pouco.