... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, March 25, 2021

A cegueira revisitada

“O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos […] Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” Quem leu “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, reconhece esta citação.

Raros livros descrevem tão bem a crua brutalidade e o egoísmo feroz como “Ensaio sobre a Cegueira”, provavelmente o livro mais adequado para estes tempos em que vivemos, até porque fala de uma pandemia inexplicável. De facto, contrariamente à experiência de uma humanidade onde todos se estão a ajudar para o desenvolvimento da grande família feliz (como se ouve muito dizer pelos apologistas da sociedade glamour), acredito que este é um momento de grande cegueira. No geral, o ser humano tem muito pouco de bondade inata e é preciso coragem para o reconhecer. A cegueira não é apenas a incapacidade de ver (ainda que, como disse Saramago, “um olho cego transmite a cegueira ao olho que vê”); são também as falsas ideias e os falsos conceitos que a sociedade impõe como se fossem verdadeiras, e que dissimulam a transparente realidade.

Nessa parábola onde todos vão sendo acometidos por uma treva branca que os deixa cegos, damo-nos  conta do agreste mundo de luta humana, onde o egoísmo constante é exacerbado pela ausência de restrições que  tristemente nos damos conta  não serem uma obrigação da ética íntima de cada ser mas apenas e só uma questão de receio de punição social que se torna inexistente dada a cegueira. Assim, sucedem-se os casos animalescos de brutalidade, de luta pela comida, de desprezo total pelo asseio, e, finalmente, de invasão da liberdade alheia e de descaso pela dor de outrem como são as lutas físicas, as violações e os homicídios.

Quão generoso é o ser que nada tem a ganhar com isso? E, por outro lado, quão hipocritamente sinistra é a falsa dádiva do ser que pretende com o seu cinismo de falsa generosidade obter algo?

Nada é mais perigoso que a tentação desse pacto com aquele que nos oferece uma mão mas que pretende retirar-nos a cabeça.

O ser humano ali descrito é um animal, bem ou mal domesticado conforme as situações e as conveniências, porque o comodismo, certa fatalidade, o receio, e, no fundo, a satisfação das necessidades mais básicas e de conforto do ser humano levam a que este a tudo se habitue, mesmo que esse “tudo” seja degradante ou lhe retire completamente a memória da sua vida passada. Neste particular, há um momento bem revelador quando a criança para de chorar convulsivamente a morte da sua mãe porque tem fome e o cheiro da comida traz-lhe o instinto feroz e urgente da saciedade que ele tem de satisfazer.

Afinal, o que buscamos? Saciar o corpo ou o coração? A breve prazo, a recordação da mãe voltará e, com esta memória, mesmo já saciado com pão, os olhos cegos voltam a encher-se de lágrimas, provando que a cicatriz do amor perdido não se atenua nunca, antes se agudiza com certa culpa.

 Enfim, no meio de todo o apocalipse, há uma esperança “A cegueira também é viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.” No caso deste Ensaio, a única não cega é a mulher do médico, que é também a única figura de abnegada generosidade, de grande capacidade de organização e também iluminada com o perdão (perante quem merece) e com uma raiva feroz (perante quem só é digno desta).

 No fundo, o que é estar cego senão ser (in)voluntariamente vendado perante o manicómio de contradições que nos rodeia, teimosamente persistir no teatro do absurdo em vez de encarar a realidade com clareza, e ignorar aquela centelha de fogo interior que nos eleva a sermos mais que animais?

 

Thursday, March 11, 2021

Aparências

 Não é por acaso que, de vez em quando, escrevo sobre relacionamentos tóxicos. É porque já os conheci e – como dizia uma escritora cujo nome agora me escapa – “ninguém foge a si mesmo quando escreve”. Falar sobre um passado marcante não é mau. O que é mau é fechar tudo num local bem fundo e escondido, enquanto se vive numa espécie de ilusão permanente, numa névoa ingénua e perigosa de que “todos os relacionamentos são assim”. Não são. Felizmente, a esmagadora maioria da espécie humana não vive numa montanha russa, na qual certos dias, semanas ou meses correspondem a pancadaria e outros a beijos – sem que se saiba muito bem que comportamento nosso originou qual resposta do outro lado.

Noutros textos, já falei sobre os laços que se desenvolvem entre abusadores e abusados; a despersonalização dos abusados e a mitificação dos abusadores (feita até pelos próprios envolvidos na história); as danças de domínio e submissão (que podem ser abertamente jogadas com costelas partidas e humilhações públicas ou subtilmente seduzidas com ofertas amorosas, porque nunca uma aranha apanhou uma mosca com jogo limpo); a objectificação das pessoas abusadas que são roubadas da sua identidade plena como seres humanos; a disfuncionalidade das famílias sem base real que se aproveitam de falsas construções apoiadas por uma sociedade puritana que se deixa levar pela foto do Facebook; o ver só aquilo em que se quer acreditar; o reviver de traumas muito antigos que a pessoa acredita serem o suporte do mundo (e que ela nem sabe que tem); a necessidade perversa que o abusador tem de vampirizar alguém (por isso, nunca deixa o abusado partir, e daí o ciclo de sedução quando sente que vai haver um divórcio, por exemplo); a necessidade não menos perversa que o abusado tem de que o abusador o reconheça como pessoa (e daí que volte a cair eternamente no jogo até que perceba que está doente e saia dessa roda de hamster).

Recentemente, recebi um e-mail que me indagava: “Se uma pessoa é vítima destas situações, porque é que não sai?” A pergunta é legítima, mas eu suponho que vem de quem nunca esteve numa situação semelhante, muito embora eu também me irrite bastante com quem não sai durante anos a fio dado que tenho uma personalidade decidida e racional. Tomemos como exemplo: se uma criança for habituada a comer do lixo, ela comerá do lixo onde quer que vá. Não conhece outra realidade. Convide-a para um banquete e ela olhará para a mesa bonita com muita desconfiança. Na concepção dela, aquilo pode ser veneno disfarçado. Se o lixo estiver ali ao lado, ela vai dirigir-se ao lixo e comer, não porque seja melhor mas porque esse é o hábito no qual ela se sente confortável (ainda que seja mau para ela e talvez ela saiba disso). Confortável porque ela está já muito treinada pela sua vida para lidar com esse lixo e, portanto, continua a escolher aquilo para cujos dramas ela já arranjou solução: por exemplo, no caso, ela já saberia lidar com as eternas dores de barriga que comer lixo lhe ia causar. Mas o banquete, ainda que bom, ela não conhece. Tem medo de tanta fartura. É por esse intenso medo que ela arranja desculpas para continuar a revolver na porcaria. Em essência, falta coragem à pessoa abusada para sair do que ela sabe ser muito inferior ao que ela merece.

Claro que esse medo pode ter razões pragmáticas e muitíssimo legítimas quando a pessoa teme pela própria vida ou pela sua integridade pessoal, coisa que não é de desprezar pois todo o abusador é um mágico da ilusão. Finge ser socialmente impecável, cheio de valores e de bons sentimentos, quando não mesmo moralista; porém, isto não passa daquilo a que o psiquiatra americano M. Scott Peck chamou “as pessoas da mentira” pois temos de recordar que o abusador que hoje adoça com carinhos e aconchegos fá-lo por uma causa egoísta, querendo-as pessoas junto de si para melhor as submeter a algo amanhã, pois trata-se da mesma pessoa que ainda ontem batia, humilhava, trapaceava, torturava.

Mas poderá também ser que o medo do abusado seja algo não tão extremo, mas apenas o medo de alguém que recusa enfrentar os seus próprios traumas, incluindo a perda dessa ilusão relacional, de verificar que investiu metade da vida num sonho que não era mais do que um nevoeiro, a complicação de cortar completamente laços com os seus vícios e de assumir uma vida nova e saudável. Enfim, ser honesto consigo e ser feliz exige transformações. É um grande compromisso: o compromisso consigo mesmo. Nenhuma ligação tóxica resiste quando decidimos ser nós mesmos por inteiro.