“O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos […] Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” Quem leu “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, reconhece esta citação.
Raros livros descrevem tão
bem a crua brutalidade e o egoísmo feroz como “Ensaio sobre a Cegueira”,
provavelmente o livro mais adequado para estes tempos em que vivemos, até
porque fala de uma pandemia inexplicável. De facto, contrariamente à
experiência de uma humanidade onde todos se estão a ajudar para o
desenvolvimento da grande família feliz (como se ouve muito dizer pelos apologistas
da sociedade glamour), acredito que este é um momento de grande cegueira. No
geral, o ser humano tem muito pouco de bondade inata e é preciso coragem para o
reconhecer. A cegueira não é apenas a incapacidade de ver (ainda que, como
disse Saramago, “um olho cego transmite a cegueira ao olho que vê”); são também
as falsas ideias e os falsos conceitos que a sociedade impõe como se fossem
verdadeiras, e que dissimulam a transparente realidade.
Nessa parábola onde todos vão sendo acometidos por uma treva branca que os deixa cegos, damo-nos conta do agreste mundo de luta humana, onde o egoísmo constante é exacerbado pela ausência de restrições que tristemente nos damos conta não serem uma obrigação da ética íntima de cada ser mas apenas e só uma questão de receio de punição social que se torna inexistente dada a cegueira. Assim, sucedem-se os casos animalescos de brutalidade, de luta pela comida, de desprezo total pelo asseio, e, finalmente, de invasão da liberdade alheia e de descaso pela dor de outrem como são as lutas físicas, as violações e os homicídios.
Quão generoso é o ser que nada tem a ganhar com isso? E, por outro lado, quão hipocritamente sinistra é a falsa dádiva do ser que pretende com o seu cinismo de falsa generosidade obter algo?
Nada é mais
perigoso que a tentação desse pacto com aquele que nos oferece uma mão mas que
pretende retirar-nos a cabeça.
O ser humano ali descrito é um animal, bem ou mal domesticado conforme as situações e as conveniências, porque o comodismo, certa fatalidade, o receio, e, no fundo, a satisfação das necessidades mais básicas e de conforto do ser humano levam a que este a tudo se habitue, mesmo que esse “tudo” seja degradante ou lhe retire completamente a memória da sua vida passada. Neste particular, há um momento bem revelador quando a criança para de chorar convulsivamente a morte da sua mãe porque tem fome e o cheiro da comida traz-lhe o instinto feroz e urgente da saciedade que ele tem de satisfazer.
Afinal, o que
buscamos? Saciar o corpo ou o coração? A breve prazo, a recordação da mãe
voltará e, com esta memória, mesmo já saciado com pão, os olhos cegos voltam a
encher-se de lágrimas, provando que a cicatriz do amor perdido não se atenua
nunca, antes se agudiza com certa culpa.