Não é por acaso que, de vez em quando, escrevo sobre relacionamentos tóxicos. É porque já os conheci e – como dizia uma escritora cujo nome agora me escapa – “ninguém foge a si mesmo quando escreve”. Falar sobre um passado marcante não é mau. O que é mau é fechar tudo num local bem fundo e escondido, enquanto se vive numa espécie de ilusão permanente, numa névoa ingénua e perigosa de que “todos os relacionamentos são assim”. Não são. Felizmente, a esmagadora maioria da espécie humana não vive numa montanha russa, na qual certos dias, semanas ou meses correspondem a pancadaria e outros a beijos – sem que se saiba muito bem que comportamento nosso originou qual resposta do outro lado.
Noutros textos, já falei sobre os laços que se desenvolvem entre abusadores
e abusados; a despersonalização dos abusados e a mitificação dos abusadores
(feita até pelos próprios envolvidos na história); as danças de domínio e
submissão (que podem ser abertamente jogadas com costelas partidas e humilhações
públicas ou subtilmente seduzidas com ofertas amorosas, porque nunca uma aranha
apanhou uma mosca com jogo limpo); a objectificação das pessoas abusadas que
são roubadas da sua identidade plena como seres humanos; a disfuncionalidade
das famílias sem base real que se aproveitam de falsas construções apoiadas por
uma sociedade puritana que se deixa levar pela foto do Facebook; o ver só
aquilo em que se quer acreditar; o reviver de traumas muito antigos que a
pessoa acredita serem o suporte do mundo (e que ela nem sabe que tem); a
necessidade perversa que o abusador tem de vampirizar alguém (por isso, nunca
deixa o abusado partir, e daí o ciclo de sedução quando sente que vai haver um
divórcio, por exemplo); a necessidade não menos perversa que o abusado tem de
que o abusador o reconheça como pessoa (e daí que volte a cair eternamente no
jogo até que perceba que está doente e saia dessa roda de hamster).
Recentemente, recebi um e-mail que me indagava: “Se uma pessoa é vítima
destas situações, porque é que não sai?” A pergunta é legítima, mas eu suponho
que vem de quem nunca esteve numa situação semelhante, muito embora eu também
me irrite bastante com quem não sai durante anos a fio dado que tenho uma
personalidade decidida e racional. Tomemos como exemplo: se uma criança for
habituada a comer do lixo, ela comerá do lixo onde quer que vá. Não conhece
outra realidade. Convide-a para um banquete e ela olhará para a mesa bonita com
muita desconfiança. Na concepção dela, aquilo pode ser veneno disfarçado. Se o
lixo estiver ali ao lado, ela vai dirigir-se ao lixo e comer, não porque seja
melhor mas porque esse é o hábito no qual ela se sente confortável (ainda que
seja mau para ela e talvez ela saiba disso). Confortável porque ela está já
muito treinada pela sua vida para lidar com esse lixo e, portanto, continua a
escolher aquilo para cujos dramas ela já arranjou solução: por exemplo, no
caso, ela já saberia lidar com as eternas dores de barriga que comer lixo lhe
ia causar. Mas o banquete, ainda que bom, ela não conhece. Tem medo de tanta
fartura. É por esse intenso medo que ela arranja desculpas para continuar a
revolver na porcaria. Em essência, falta coragem à pessoa abusada para sair do
que ela sabe ser muito inferior ao que ela merece.
Claro que esse medo pode ter razões pragmáticas e muitíssimo legítimas quando
a pessoa teme pela própria vida ou pela sua integridade pessoal, coisa que não
é de desprezar pois todo o abusador é um mágico da ilusão. Finge ser socialmente
impecável, cheio de valores e de bons sentimentos, quando não mesmo moralista;
porém, isto não passa daquilo a que o psiquiatra americano M. Scott Peck chamou
“as pessoas da mentira” pois temos de recordar que o abusador que hoje adoça
com carinhos e aconchegos fá-lo por uma causa egoísta, querendo-as pessoas
junto de si para melhor as submeter a algo amanhã, pois trata-se da mesma
pessoa que ainda ontem batia, humilhava, trapaceava, torturava.
Mas poderá também ser que o medo do abusado seja algo não tão extremo, mas
apenas o medo de alguém que recusa enfrentar os seus próprios traumas,
incluindo a perda dessa ilusão relacional, de verificar que investiu metade da
vida num sonho que não era mais do que um nevoeiro, a complicação de cortar
completamente laços com os seus vícios e de assumir uma vida nova e saudável.
Enfim, ser honesto consigo e ser feliz exige transformações. É um grande
compromisso: o compromisso consigo mesmo. Nenhuma ligação tóxica resiste quando
decidimos ser nós mesmos por inteiro.