... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, June 17, 2021

EURO à distância

Como me encontro a viver fora da Europa, resta-me ser observadora internet do Euro 2020. Longínquo me parece Julho de 2016, quando Portugal se sagrou campeão europeu de futebol num jogo contra a França e eu estava na Alameda, frente a um ecrã gigante, com a cara pintada de vermelho e verde, e uma camisola da selecção vestida. O lapso temporal e geográfico é cortante e difícil de explicar. Porém, não tão difícil de explicar como a “trip” psicadélica que é estar a ver um campeonato que se intitula Euro 2020 mas acontece no ano de 2021. Isso sim, é um caso à escala planetária que faria um extraterrestre que nos visitasse pensar “Estes tipos não são bons em calendários!” A UEFA poderia ter intitulado isto Euro 2021, só para ficar menos psicótico? Podia, mas não o fez porque o campeonato era para ter sido em 2020 e optaram por manter o nome. Ok, entendo, mas cada vez que vejo toda a gente a dizer “2020”, algo dentro de mim se interroga se realmente vivi o ano passado, se estou em sono criogénico, enfim, se estou realmente em 2021. Veremos como se vão intitular os Jogos Olímpicos. Pouco falta para nos enganarmos todos na nossa idade, só porque não vivemos plenamente durante a quarentena.

É muito divertido escutar os comentários dos experts internacionais sobre os jogos. Apanho-os quase sempre, em registos de antevisão, a queixar-se que Portugal é uma frustração e uma surpresa. É a velha história: uma equipa cheia de potencial, que podia fazer maravilhas, marcar imenso, jogar brilharetes, mas depois não concretiza. Parece-me que escutei isto sobre Portugal toda a vida, independentemente da constituição da equipa. Podiam arriscar mais, mas jogam muito à defesa, fecham-se e esperam, e depois sim, lá partem para o contra-ataque quando abre uma brecha. Do ponto de vista extra-muros, esta é a visão que se tem sobre Portugal, década após década, entra craque e sai craque, gente brilhante existe, mas o estilo da equipa permanece cuidadoso e sem dar azo a grandes rasgos.

Há equipas – como o Brasil, por exemplo – que se divertem muito a jogar. Nós olhamos e vemos que eles estão a levar aquilo com leveza e alegria, como se fossem miúdos a brincar. Mas o português, a jogar, não está ali para se divertir. O tuga joga como vive, de acordo com a sua personalidade cultural. Por mais brilhante que seja, faz parte da sua natureza resguardar-se, ter cuidado, esperar até poder avançar com maior certeza, e raramente embandeirar em arco. Além disso, enquanto equipa, não costuma vivenciar momentos de pavão, porque o português não é exibicionista por natureza - o francês e o alemão, por exemplo, ainda que possam não ser os melhores, dirão que são. Note-se que estou a falar da equipa como um todo e não de estrelinhas.

Outra coisa intrínseca é que o português encara os resultados quase de forma fatídica. Enquanto que outras nacionalidades, no fim do jogo, começam por analisar se jogaram bem ou mal, ou talvez por culpar circunstâncias externas ou até o árbitro, o português – se perdeu – suspira melancolicamente e – caso tenha ganho – faz festa, mas em qualquer ocasião, dispara a mesma frase: “O futebol é assim”. Como quem diz “A vida é assim”. Ou seja, nada a fazer, estava tudo destinado, eu fui só um agente destes fados, foi Deus que ditou tudo, a sorte estava escrita.

É talvez por acreditar que existe uma componente grande de inescapável destino em tudo que o português se protege tanto, jogando tanto à defesa, mesmo quando tem brilhantismo mais do que suficiente para arriscar ataque ou, simplesmente, divertir-se a jogar. O tuga é um pouquinho como os judeus: confia… mas nunca fiando, vamos com calma, sabe-se lá quando vem outra desgraça.

A personalidade cultural de cada país influencia no modo de jogar – isso foi óbvio em anos anteriores: os alemães organizados e agressivos, os ingleses rápidos e sem problemas de partir para o embate físico, os franceses orgulhosos e detalhados, os italianos matreiros e atraentes, os espanhóis criativos e confiantes, e os gregos que jogam de forma mais semelhante a Portugal.

Prognósticos? Difícil, não é? Mas o orgulho do galo foi por nós ferido há quatro anos. Pode ser que ele agora cante… se assim estiver fadado! Calma, Portugueses, calma. Já dizia o Fernando Pessoa que tudo está destinado a Portugal. Porém, desconfio que Pessoa estava a falar de várias coisas, que não de futebol. Alea jacta est.

Tuesday, June 1, 2021

Ofendidos e ofendidas

 Poderia ter intitulado apenas com a palavra “ofendidos” pois todo aquele que fez a instrução primária saberá que o plural masculino da língua portuguesa encerra em si o conteúdo semântico capaz de se referir ao conjunto masculino e feminino, ou seja, ao dizer “ofendidos” posso estar a falar de homens e de mulheres no seu conjunto global. O mesmo acontece quando dizemos, por exemplo, “os avós” que são o avô e a avó. Porém, ultimamente, há um certo drama tanto em termos de substantivos como de adjectivos, apesar das bem claras regras da língua portuguesa. Dada a crise de sensibilidade aguda dos seres humanos no período histórico actual, há que explicar muito bem que estamos a incluir toda a gente no nosso discurso, não vão as pessoas ficar… ofendidas! (e ofendidos! dirá alguém que acha que não estou a ser inclusiva, agora de modo oposto.) Acontece que tenho de conjugar concordantemente em género e número o adjectivo com o nome “pessoas” que é feminino, logo há que dizer “ofendidas” neste caso; quem não percebeu, volte para a escola, por amor de Cristo.

Relendo agora, reparo que devo também esclarecer mais dois pontos em relação ao discurso do parágrafo anterior, para não ofender ninguém. Primeiro, apenas referi a escola primária, porque na minha época ainda era assim que esses primeiros anos de ensino se denominavam. Bem sei que hoje em dia se chama ensino básico. Até assisti a uma discussão de ofendidos sobre “não ser professor primário, muito menos ser primário!” mas confesso que não vejo onde está o aprimoramento em passar de “primário” para “básico”, sobretudo porque a palavra “básico” tem uma conotação de pouca inteligência no calão actual. Em segundo lugar, quando usei a expressão “por amor de Cristo” fi-lo por simples bordão linguístico, e não com o intuito de usar o nome do filho de D-us em vão – o que, de imediato, me colocaria em desrespeito das leis mais ortodoxas para os que as seguem e se sentiriam ofendidos. Devo ainda esclarecer que isto não significa que eu seja contra o amor de Maomé, de Buda, de Shiva, de Adonai ou de qualquer outro. Ou mesmo de nenhum. Embora, caso dissesse “de nenhum” isso seria a negação do próprio amor porque não pode haver amor com origem no nada, o que me colocaria alguns problemas de sentido não só na frase mas sobretudo na essência. Enfim, ser completamente inclusivo na linguagem torna-se, por vezes, um roçar do absurdo!

Por esta altura, já a ironia se tornou óbvia, mas a realidade é esta: a vontade desmedida de ser linguisticamente inclusivo pode levar a tolices gramaticais e a estupidez semântica.

Numa entrevista de televisão em 2018, aquele que é provavelmente o psicólogo e professor mais visto no Youtube, Jordan Peterson, causou celeuma quando interrogado sobre as suas afirmações muito directas, potencialmente ofensivas, sobre os direitos dos transsexuais. Peterson disse “Para podermos pensar, temos de arriscar ser ofensivos.” Em boa verdade, sempre que há uma discussão mais ou menos acalorada, com troca de opiniões, este risco existe sempre. Para abdicarmos dele, a solução é sermos hipócritas. O cultivo de uma volúvel e saltitante hipocrisia garante-nos o compadrio e a tolerância da convivência com quase todos – o que não significa que tenhamos nem a sua camaradagem (muito menos amizade) e nem tão pouco a sua admiração. Pois quem no seu perfeito juízo ou carácter teria um pingo de consideração ou daria valor a quem não tem a verticalidade de assumir as suas questões, sejam elas quais forem?

Não se trata de ser contundente nem propositadamente sarcástico – embora, pessoalmente, eu seja frequentemente acusada de ser sarcástica e irónica, o que talvez seja verdadeiro (acuso-me!). Trata-se de dar espaço às ideias e ao debate, ao invés de começarmos a ter comichão sempre que alguém abre a boca e imediatamente nos sentirmos ofendidos pela hipótese das palavras ou das ideias, ou até da ausência destas, nos magoarem. Afinal, ao longo da História, os realmente ofendidos tiveram razões bem mais fortes do que discursos para sentirem mágoa. Sentir-se ofendido pela simples opinião de alguém não será dar-lhe muita importância? O importante são as condições reais da nossa vivência, para a qual opiniões alheias pouco deveriam importar.

Matutando neste assunto, acabei por descobrir um remédio que serve a todo o ofendido – e toda a ofendida. Ao sentir-se prejudicado por palavras, reze um Pai Nosso e carregue forte na intenção naquela parte onde diz: “Perdoai-nos as nossas ofensas… assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.” Confio que isto há-de acertar as nossas contas, por força maior.