... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, November 18, 2021

Autorização

 Todos os anos, em Novembro, se celebra o Dia Internacional da Erradicação da Violência Contra a Mulher. O nome do dia é mesmo assim: International Day for the Elimination of Violence Against Women. Porém, já vi que em Portugal há casos de organizações que se esquecem de traduzir a palavra “erradicação” (ou eliminação, como preferirem), e então exibem uns posters de bradar aos céus que dizem “Dia da Violência Contra a Mulher”. Não é grave, é só a ideia oposta! Há coisas que parecem comédia… mas que, na verdade, são trágicas pelo fundo conceptual e cultural que lhes deu origem.

Este ano de 2021, acompanhei o desenrolar de um caso que, não sendo dos mais graves (não envolve pancadaria, violações, clausura e tantos dramas que outras mulheres enfrentam), vem provar que, mesmo aos olhos daqueles que a nossa sociedade coloca num patamar mais elevado, a mulher ainda é vista como uma espécie de apêndice do homem.

Claro que seria interessante dissecar o que a nossa sociedade entende por patamar elevado e porque é que algumas pessoas são lá colocadas, eventualmente sem nenhum atributo que as faça sentar lá o traseiro, visto que o cérebro não acompanha. Mas isso será motivo para outro tema.

O caso foi divulgado este Verão, apesar de já ter acontecido seis meses antes no Brasil. Uma conhecida apresentadora de televisão de S. Paulo, cujo nome de estrela é Luísa Mell, foi fazer uma depilação laser às axilas numa clínica dermatológica que já visitava assiduamente. O médico falou-lhe de um laser novo, que seria “tiro e queda”, mas que exigia que o procedimento fosse feito sob anestesia por precaução. Seria ele próprio, médico, a executar tudo.

Aqui, faço um parêntesis. Não sei como é que se fazem as depilações a laser no Brasil, porque no restante deste mundo de Deus a gente entra numa dermo-estética e é servido por uma esteticista (se bem que tenha tirado formação para este efeito) e não por um médico. Porém, diferenças culturais existem! E económicas também! Pode dar-se o caso de ser uma dermo-estética da mais alta elite, que só serve os mais abastados (volto à conversa do patamar elevado…cof cof cof) Certo é que jamais ouvi que um médico realizasse depilações a laser, mas parece que no Brasil acontece. Também nunca ouvi que existissem casos de anestesia, mas admito sem custo que as haja para evitar sentir a dor. Enfim, drogas legais e questões financeiras à parte, nada disto é o foco desta história, portanto vamos em frente.

Luísa disse que sim ao super laser e foi anestesiada. Quando acordou, o médico tinha executado um bónus não requisitado: nada mais nada menos que uma cirurgia de lipo-aspiração naquela zona, retirando gordura da parte superior interna dos braços através das axilas.

Luísa não sabia que a cirurgia ia ser feita. Não a pediu e não a queria. Ao inquirir o médico, este respondeu que o marido de Luísa, um empresário chamado Gilberto Zaborowsky, tinha requisitado a mesma por considerar que a mulher estava “gordinha naquela área”. Obviamente, hoje este senhor já é ex-marido.

A questão aqui é o pensamento destes dois homens: o então marido e o médico. Ambos com pleno ideal de que o corpo da mulher não é dela, é do homem com quem ela está. Assim sendo, Luísa não tem de ser inquirida, tão pouco comunicada sobre procedimentos, cirurgias, invasões. A mulher existe em prol de alguém (pelo menos, fisicamente) e nessa senda é esse alguém que tem palavra única. Não ocorreu a estas criaturas dores de pós-operatório, cicatrizes, deformações. Também não lhes ocorreu o impacto psíquico. Pois tão pouco lhes ocorreu que Luísa tem vontade – ninguém lhe perguntou nada! E sequer lhes ocorreu informá-la! Sobre o próprio corpo de Luísa! Não estão muito longe de noções de escravatura… Estão, ao menos, a equiparar uma mulher a uma propriedade e a retirar-lhe qualquer qualidade de ser humano.

Esta história aconteceu no Brasil. Mas nas nossas elites e nos nossos bairros, este tipo de ideia também grassa como mato. Fica para uma próxima oportunidade.

Wednesday, November 3, 2021

Luzes

Chegados ao fim do ano no calendário gregoriano, é o tempo de muitas diferentes culturas espalhadas pelo mundo celebrarem a Luz. Diwali é o Festival das Luzes para os Hindus, Budistas e Sikhs; Hannukah é a Festa das Luzes para os Judeus. Sem querer ser extensiva, eis um rápido "toca e foge".

Diwali (cujo nome significa “uma série de luzes”) simboliza a vitória simbólica da luz sobre as trevas, e bem assim do conhecimento sobre a ignorância e do bem sobre o mal. A história do festival varia conforme as religiões. Por exemplo, no Hinduísmo celebra-se o retorno da esperança e dedicam-se vários rituais à deusa Lakshmi, iluminando tanto a casa como os espaços exteriores com luzes várias e brincando com bombinhas de artifício.

Hannukah ( a dedicação) é igualmente um festival de recuperação, após a destruição do segundo templo. Fala da re-edificação do templo, onde deveria haver uma luz a brilhar. Infelizmente, reza a história que só havia óleo para um dia devido à devastação da luta. Porém, deu-se um milagre e o óleo da lâmpada durou uma semana, daí que o festival também dure uma semana, onde se acende uma nova vela a cada pôr do sol.

O curioso dualismo luz e trevas está presente em todas as culturas e teologias: a luz associada ao divino, e bem assim à verdade, à inocência, à virtude; as trevas associadas ao pecado, e como tal à maldade, ao diabólico e à podridão.

A dualidade luz-trevas aparece nas mais antigas filosofias do Leste, como a de Confúcio, como uma metáfora para questões éticas, sempre o bem sendo simbolizado pela luz e o mal pela escuridão. Também no Ocidente, com Platão, esta dicotomia se apresentava do mesmo modo. De resto, os estudiosos de Pitágoras e da sua Tábua de Opostos também lá encontram “luz versus escuridão” como uma das questões filosóficas a explorar.

Ainda hoje, a nossa cultura tem bem enraizada esta ideia. Basta pensarmos que nos referimos à Idade Média como a Idade das Trevas e chamamos ao Séc. XVIII o Iluminismo; as injustas superstições relativas aos gatos pretos (um dos animais mais bonitos que existem) versus os gatos brancos; as vestes culturalmente observadas quanto ao luto no Ocidente por oposição às virginais roupas dos casamentos e angelicais brancos dos baptizados. O conceito está por todo o lado. Até os fãs de “A Guerra das Estrelas” não se esquecem de que existe um lado luminoso – o de Luke Skywalker – e um lado escuro – o do seu pai, Darth Vader, que se tornou num refrão em muito merchandising que ostenta “Come to the dark side”.

No Ocidente, a religião também teve um papel na criação do mito luz e trevas. É na narrativa da criação do mundo, vulgo Génesis, que se encontra a sua raiz. Logo no primeiro dia, a primeira acção divina é a criação de luz:“E Deus disse “Faça-se Luz”. E houve luz. E Deus viu a luz, que era boa, e Deus dividiu a luz das trevas. E Deus chamou à luz dia, e às trevas chamou noite. E no dia houve a manhã e também a tarde.” (Génesis)

Reparem que eu nunca disse branco e preto, disse luz e trevas. Esse não é sequer um debate. Embora esta metáfora tenha sido muitas vezes usada para intensificar racismos e outras ridicularias, não é isso que está na base do conceito. Nem poderia, porque a pele mais sedosa do mundo é a que contem mais melanina.

Importante a reter é que a Luz é algo a atingir enquanto claridade, visão, amplidão, verdade, alegria, prosperidade. Se trevas são equivalentes a ignorância e a escassez, quem quer associar-se com isso?