O triângulo é uma figura problemática. Em triângulos amorosos, há sempre um lado que fica a perder. Já dizia Tom Hanks no “Terminal de Aeroporto”: “Três é uma multidão”. Se um ser humano, com toda a sua bagagem, já é cheio de complexidade, coloquemos dois seres humanos em relação: é preciso muito para dar certo. Se colocarmos três indivíduos na relação ao mesmo tempo, a hipótese de dar certo é nula. Que me desculpem os defensores do poliamor, mas “poli” significa “muitos”. Dar conta de muita gente ao mesmo tempo é uma impossibilidade. Desde já uma impossibilidade mental – eu nem tão pouco recordo que reuniões tenho hoje, como há quem possa ter várias relações em paralelo? Impressionante. Ou assustador, depende do ponto de vista. Nem coloco as impossibilidades de ordem afectiva, porque, obviamente, quem anda com várias pessoas é porque não tem especial interesse em nenhuma delas. Excepto o interesse em si próprio, claro.
Vem isto a propósito da famosa cena de violência que
Will Smith fez na noite dos Óscares. Quase toda a gente gosta do Will Smith,
bom rapaz, muito dedicado à família, certa aura ingénua, quase teenager (apesar
da sua meia-idade). Foi com espanto que o vemos a bater em alguém por causa de
uma piada – até porque o Will se riu da piada, como vimos.
Leiam entrevistas antigas dele e começam a ver um
desenho curioso. Mais do que dedicado à família, o Will, sofrendo de devoção
aguda, anula-se perante a sua mulher. Saltou-me à vista esta confissão dele:
“Sou monogâmico, acredito na fidelidade 100 por cento, mas Jada necessita de
várias pessoas. O meu maior desejo é que ela seja feliz, e por isso aceito que
a minha mulher tenha vários parceiros. Isso não está de acordo com aquilo que quero
de uma relação mas Jada está acima das minhas convicções.” Calma, Will. Toma um
cházinho. A questão não é se Jada é mono, bi, tri, poli ou se gosta de cães.
Ela tem o direito de gostar do que ela quiser, desde que não magoe ninguém
(este último ponto é importante, porque magoar outro ser é crime, e as pessoas
esquecem-se disso). A questão é, Will, se aquilo de que Jada gosta não está de
acordo com aquilo que tu queres de uma relação… então, amigo, a vossa relação
acabou. Não existe nenhuma razão saudável para que a felicidade dela seja
alcançada à custa da tua infelicidade.
Padrão relacional tóxico: Will vive numa relação que
vai contra os seus valores; mas, heroicamente (do seu ponto de vista),
prossegue nesse casamento porque, segundo ele, a felicidade do outro e o seu
amor ao outro são tudo o que importa. Will escolhe abdicar do seu amor próprio
e do respeito que deve a si mesmo para ser reconhecido por outra pessoa, no
caso a mulher. Mas Will nem se reconhece enquanto merecedor de coisa nenhuma!
Falha na base.
Há pessoas bem-intencionadas (e eu até já pertenci a
esse clube) que acreditam que se se sacrificarem muito por alguém, vão salvar
esse outro adulto e o trauma alheio. Nada mais errado. Não é nossa
responsabilidade. Para além disso, a influência de alguém sobre nós não pode
nunca ser tanta que nos leve a abdicar do nosso ideal de felicidade pessoal. Temos
de ser o sujeito decisor da nossa própria vida, porque a vida é única,
individual e irrepetível. Como diz um provérbio africano: “Mais vale andar
descalço do que tropeçar usando os sapatos dos outros".
Aquela era para ter sido a noite de glória de Will
Smith, que ganhou o Óscar… mas ninguém se lembra disso, porque ele foi “defender
a mulher” a pedido desta. Isto até seria uma reacção eventualmente louvável se
estivéssemos perante um par em que ambos se defendem e se apoiam. Porém,
estamos perante um casal em que Will se desfaz todo para que Jada fique feliz…
enquanto Jada vai colecionando namorados, incluindo um dos grandes amigos do
seu filho adolescente – o que fez com que o miúdo Smith pedisse a emancipação,
tal o estado de choque em relação aos pais, nomeadamente à mãe.
Neste tipo de casais, não é raro que o “herói” (no
caso, Will) tenha uma epifania, ao fim de anos, acreditando que conversas
esclarecedoras vão fazer o parceiro ver a luz. Acreditam que se lhe explicarem
como ele/ela foi um narcisista do pior, vão mudar a personalidade alheia. Mas
nós nunca mudamos ninguém, excepto a nós mesmos – e só com esforço. Para
pessoas que se aproveitam dos outros, as relações são um negócio. Existe uma
motivação ulterior: dinheiro, status, dependência, domínio mental ou sexual, o
que seja. Aliás, jamais é preciso explicar a generosidade a alguém que gosta de
nós. É importante nunca esquecer isso. Tal como é importante lembrar que o
narcisista vai sempre fingir ser um doce para melhor manipular a situação a seu
favor e obter dividendos. Não significa que ele/ela tenha mudado em nada.
O meu propósito não foi estar a fazer crónica de
coscuvilhice, mas sim apelar a uma auto-reflexão nossa, pois quantos de nós não
fazem asneiras cheios de boas intenções – à semelhança do Will. Na vida,
acontecem-nos vários dramas cuja origem nos escapa. Mas a responsabilidade da
reacção é nossa. O que está em causa é o nosso equilíbrio mental e até a nossa
identidade.