Este texto pode ser desconfortável para pessoas que não gostam de evoluir e seguir em frente, as chamadas pessoas-âncora (no mau sentido da palavra). Afinal de contas, um barquinho no porto está seguro, mas ninguém constrói um barco para ele ficar eternamente no porto, por mais bonito que seja esse lugar.
Qual é, então, o bode expiatório a que me refiro? Falo do “trauma”. Hoje em
dia, tudo é um trauma. A palavra está tão banalizada que quase perde o sentido.
O José que ficou parado no trânsito está traumatizado com a sinalização desta
cidade; a Maria está traumatizada com a má nota que recebeu a Matemática;
enfim, tudo é um trauma e todos se ancoram nos traumas para se desculparem das
suas atitudes subsequentes (por exemplo, no caso do José seria não só chegar
atrasado como não prestar atenção a nada, no caso da Maria poderia ser tratar
todos abaixo de cão porque, coitada, não consegue ultrapassar o drama).
A palavra “trauma”, que vem do grego, significa “ferida” e não é coisa
pequena. Não devia ser utilizada para falar de coisas corriqueiras que de
feridas não têm nada. Quando muito, serão arranhões. Nada que um algodão com
água oxigenada, dose única, não cure.
Mas há verdadeiros traumas que também são utilizados como bodes expiatórios.
Quando as pessoas reagem mal na vida, convencionou-se hoje em dia assumir que é
por culpa de um trauma antigo (geralmente, de infância). É verdade que acontece
em muitos casos… mas noutros, nem tanto! E mesmo quando a causa é um trauma
real, não estou convicta que seja produtivo, inclusive para o indivíduo,
desculpabilizar tudo com base num passado sofredor.
Sim, é necessário ter empatia com quem sofreu determinados horrores. Sim, é
necessário dar a essas pessoas (e a nós mesmos, se for o caso) uma dose extra
de compreensão e de tempo para que enveredem por um processo de recuperação.
Porém, isto não significa que se deva ter uma compaixão tão larga que toda e
qualquer asneira que a pessoa faça na vida seja desculpável porque, coitado,
houve tempos idos em que sofreu um trauma. Existe uma espécie de
desculpabilização social e inclusive de falta de disciplina e de justiça na
vida dos indivíduos que proclamam alto e bom som os seus traumas
constantemente, e isto não é feito de forma inocente – é feito exactamente para
que os desculpemos. São pessoas-vítimas. Nunca assumem responsabilidade sobre
nada. O mundo “acontece-lhes”. Eles sofrem traumas como os guarda-redes sofrem
penalties: é complicado que não entrem, porque o mais certo é que sim.
É como se toda a vida da pessoa se concentrasse naquele momento traumático
e não tivesse nada mais além: “aconteceu-me X, agora para a vida inteira posso
fazer o que entender, não mereço julgamentos! Lembrem-se que me aconteceu X em
tempos idos: isso explica tudo.” Só que há milhares de indivíduos a quem também
aconteceu o mesmo fenómeno X e que não se transformaram em criaturas
arrogantes, abusadoras, penduradas nos outros, em suma pessoas que não
evoluíram para lá do acontecimento infeliz e que se tornaram pequenos tiranos a
quem tudo é permitido e tudo é desculpado.
Não se trata de minimizar os traumas, colocando pensos rápidos na ferida.
Trata-se de tratar a ferida, mas depois trata-se de também não passar a vida a
olhar para a cicatriz. Dependendo do caso, o próprio tratamento pode ser um
processo longo: assumir o problema, quebrar o silêncio, tratar dependendo da
evolução de cada um. Mas o passo é sempre não ficar preso numa posição de
vítima, e sim seguir para uma de sobrevivente. A pessoa tem de encontrar um
processo transformativo, algo útil onde possa aplicar a sua dor, seja num
processo criativo, artístico, numa profissão, numa missão de vida até. Uma
direcção na vida. Quando existe um “porquê”, o “como” é muito secundário.
Em suma, quando as pessoas se definem a si próprias por uma circunstância,
a vida estagna e a infecção não pára de crescer. Quando temos de pisar ovos
constantemente para lidar com alguém só porque lhe aconteceu algo no seu
passado não relacionado connosco, alerta vermelho! Aí, a pessoa em causa não é
vítima de. Já se tornou alguém que faz dos restantes suas vítimas, isso sim. A
roda gira, portanto dentro das nossas possibilidades todos nós temos de deixar
de ser um produto de algo e passar a agir para fazer do negativo um positivo.
Não há que alimentar eternos dramas.