... "And now for something completely different" Monty Python

Wednesday, June 29, 2022

O bode expiatório

Este texto pode ser desconfortável para pessoas que não gostam de evoluir e seguir em frente, as chamadas pessoas-âncora (no mau sentido da palavra). Afinal de contas, um barquinho no porto está seguro, mas ninguém constrói um barco para ele ficar eternamente no porto, por mais bonito que seja esse lugar.

Qual é, então, o bode expiatório a que me refiro? Falo do “trauma”. Hoje em dia, tudo é um trauma. A palavra está tão banalizada que quase perde o sentido. O José que ficou parado no trânsito está traumatizado com a sinalização desta cidade; a Maria está traumatizada com a má nota que recebeu a Matemática; enfim, tudo é um trauma e todos se ancoram nos traumas para se desculparem das suas atitudes subsequentes (por exemplo, no caso do José seria não só chegar atrasado como não prestar atenção a nada, no caso da Maria poderia ser tratar todos abaixo de cão porque, coitada, não consegue ultrapassar o drama).

A palavra “trauma”, que vem do grego, significa “ferida” e não é coisa pequena. Não devia ser utilizada para falar de coisas corriqueiras que de feridas não têm nada. Quando muito, serão arranhões. Nada que um algodão com água oxigenada, dose única, não cure.

Mas há verdadeiros traumas que também são utilizados como bodes expiatórios. Quando as pessoas reagem mal na vida, convencionou-se hoje em dia assumir que é por culpa de um trauma antigo (geralmente, de infância). É verdade que acontece em muitos casos… mas noutros, nem tanto! E mesmo quando a causa é um trauma real, não estou convicta que seja produtivo, inclusive para o indivíduo, desculpabilizar tudo com base num passado sofredor.

Sim, é necessário ter empatia com quem sofreu determinados horrores. Sim, é necessário dar a essas pessoas (e a nós mesmos, se for o caso) uma dose extra de compreensão e de tempo para que enveredem por um processo de recuperação. Porém, isto não significa que se deva ter uma compaixão tão larga que toda e qualquer asneira que a pessoa faça na vida seja desculpável porque, coitado, houve tempos idos em que sofreu um trauma. Existe uma espécie de desculpabilização social e inclusive de falta de disciplina e de justiça na vida dos indivíduos que proclamam alto e bom som os seus traumas constantemente, e isto não é feito de forma inocente – é feito exactamente para que os desculpemos. São pessoas-vítimas. Nunca assumem responsabilidade sobre nada. O mundo “acontece-lhes”. Eles sofrem traumas como os guarda-redes sofrem penalties: é complicado que não entrem, porque o mais certo é que sim.

É como se toda a vida da pessoa se concentrasse naquele momento traumático e não tivesse nada mais além: “aconteceu-me X, agora para a vida inteira posso fazer o que entender, não mereço julgamentos! Lembrem-se que me aconteceu X em tempos idos: isso explica tudo.” Só que há milhares de indivíduos a quem também aconteceu o mesmo fenómeno X e que não se transformaram em criaturas arrogantes, abusadoras, penduradas nos outros, em suma pessoas que não evoluíram para lá do acontecimento infeliz e que se tornaram pequenos tiranos a quem tudo é permitido e tudo é desculpado.

Não se trata de minimizar os traumas, colocando pensos rápidos na ferida. Trata-se de tratar a ferida, mas depois trata-se de também não passar a vida a olhar para a cicatriz. Dependendo do caso, o próprio tratamento pode ser um processo longo: assumir o problema, quebrar o silêncio, tratar dependendo da evolução de cada um. Mas o passo é sempre não ficar preso numa posição de vítima, e sim seguir para uma de sobrevivente. A pessoa tem de encontrar um processo transformativo, algo útil onde possa aplicar a sua dor, seja num processo criativo, artístico, numa profissão, numa missão de vida até. Uma direcção na vida. Quando existe um “porquê”, o “como” é muito secundário.

Em suma, quando as pessoas se definem a si próprias por uma circunstância, a vida estagna e a infecção não pára de crescer. Quando temos de pisar ovos constantemente para lidar com alguém só porque lhe aconteceu algo no seu passado não relacionado connosco, alerta vermelho! Aí, a pessoa em causa não é vítima de. Já se tornou alguém que faz dos restantes suas vítimas, isso sim. A roda gira, portanto dentro das nossas possibilidades todos nós temos de deixar de ser um produto de algo e passar a agir para fazer do negativo um positivo. Não há que alimentar eternos dramas.

Saturday, June 11, 2022

Em Memória do Sr. Professor Machado Pires

Quando comecei o Mestrado em Cultura e Literatura Portuguesas (na época pré-Bolonha, de Mestrados pesadões), já decidira que queria fazer tese com o Professor Machado Pires. Na época, eu tinha do Sr. Professor uma imagem distante e nutria por ele um respeito académico profundo, mistura que, sendo eu introvertida na época, resultava no que vulgarmente se traduz por “vergonha”. No entanto, já o conhecia, porque a sua mulher tinha sido minha professora e não uma professora qualquer. Eu tinha por ela a mesma veneração intelectual, mas uma relação muito mais próxima, não só porque a conhecera como docente num período extremamente vulnerável para mim, mas porque tinha formado uma relação de amizade além-aulas. Na verdade, foi ela que me incentivou a prosseguir “Não me diga que tem medo de falar com o meu marido! Isso não tem lógica!” Não tinha. Decidi-me pela ingénua frontalidade: tinha vindo para fazer tese com ele, ou Eça ou Nemésio. Tinha várias ideias, apresentei todas, com esquemas. Ele ouviu atento, entre divertido e sério, naturalmente a pensar em como a juventude se posiciona. Respondeu: “Faça Nemésio, porque tem aqui uma ideia extremamente original. Numa tese, interessa uma ideia que ainda não tenha sido falada. Isso já tem! O resto vem da sua capacidade de brilhar. A Carla hoje é uma pessoa, que direi ser insegura sem razão, porque não teve infância. Desculpe a sinceridade, sei mais do que digo. Quando tiver acabado este trabalho, será outra pessoa. Porque uma pesquisa séria e profunda transforma as pessoas. Entra uma menina, sai uma académica.” Confesso que não tinha esse discernimento de mutação na época, apesar de nunca mais ter esquecido essas palavras.

O certo é que, em breve, o Professor Machado Pires passou de meu pedagogo a meu tutor absoluto em tudo o que à academia dizia respeito. Em pouco tempo, convenceu-me a começar a dar aulas na Universidade. Eu, que até tinha começado a trabalhar como jornalista, não tinha a certeza se isso era a minha vocação. Ele achou que era e colocou-me como sua assistente. Mal sabia eu que ainda hoje seria professora universitária, vinte anos depois.

Certamente muitos terão já dito que era um Professor extraordinário a dar aulas. Conversador exímio, amplo e profundo no saber, sem presunções ridículas (marca do verdadeiro aristocrata), tornando os mais complexos contextos em simples proposições. Tinha sempre tempo, apesar dos cargos que ocupava. Escrevia com uma fluidez impressionante textos que eram, de uma só vez, intelectualmente recheados e apelativos ao grande público - era realmente dotado neste aspecto. Extremamente instintivo em relação às pessoas, era reservado quanto às suas opiniões, jamais dado a coscuvilhice (que detestava!). Era difícil fazê-lo mudar de opinião, tinha o pendor de quem guarda tudo dentro de um cofrezinho e depois diz “Lembra-se de… Eu lembro-me. Por isso, mantenho a mesma postura.” Apesar de extremamente lógico, era também incrivelmente espiritual no sentido mais amplo do termo. Sempre muito cavalheiro, apreciava nos restantes o mesmo tipo de elegância social e certa ética “à antiga”, traços que, aliás, eram apanágio do seu seio familiar.

Enquanto fui sua assistente, lecionando Cultura Portuguesa às licenciaturas, pude observar a sua forma de trabalhar mais de perto. Era como se a sua inteligência superior não necessitasse de gavetinhas (expressão que ele utilizava bastante). Não gostava de “contar os pelinhos da cauda” mas sim de “decifrar o enigma da Esfinge”: “Não vale a pena ser caturra, debitar a enciclopédia cheio de sono…”. Era pela vibração apaixonada da docência.

O mesmo na escrita. Quando escrevi o livro sobre Nemésio, olhou as provas, não concordou com certa questão, eu torci muito o nariz, ele insistiu, eu dei o braço a torcer. Foi a única vez que discutimos. “O seu feitio tem muito de personalidade aquariana”, disse ele. Tinha razão.

Amigo, Mentor, Maestro. Ora guiou ora acompanhou de perto a minha vida desde os 22 anos até há bem pouco, pois por telefone nos falávamos sempre até a sua saúde já não lho permitir. Devo-lhe o ter escolhido a minha profissão, quando eu ainda nem sabia se esse era um talento meu: “Onde a Carla vê o embrião, eu já vejo a forma adulta.” Devo-lhe o ter acreditado sempre em mim e ter-me apoiado publicamente quando muitos não o fizeram: “Duvido de muito no mundo, da sua ética não.” Faleceu e decerto muitos teceram elogios ao Sr. Reitor. À fundação da Universidade. Ao seu intelecto brilhante, reconhecido mundialmente. Acrescento: era um homem de valor e de valores, intuição apurada, sem alardes desnecessários, com a profundidade dos sábios e a simplicidade dos humildes, generoso e leal. Assim o conheci, e com ele aprendi muito. Até um dia, Sr. Professor, com grande gratidão de me ter colocado neste caminho.