... "And now for something completely different" Monty Python

Wednesday, January 10, 2007

Um Ano Novo (?)

Em 1871, um senhor chamado Eça de Queirós escreveu uma Farpa sobre o estado geral do país. As Farpas eram (puxem pela memória dos tempos de escola) umas crónicas publicadas mensalmente onde, com um espírito de galhofa, se iam dizendo muitas verdades - talvez nem todas completamente absorvidas pelos remetentes, mas o sarcasmo irónico tem destas coisas... Adiante.

O que se segue é uma citação de Eça:

" O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido nem intuição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. Vivemos todos ao acaso. Todo o viver intelectual, espiritual parado! O tédio invadiu as almas! a mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce... O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. O Estado é considerado, na sua acção fiscal, como um ladrão e tratado como um inimigo.

[...] A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O professor tornou-se um empregado das eleições.[...] E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: O País está perdido! Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que, de Norte a Sul, no estado, na economia, na moral, o País está desorganizado - e pede-se conhaque!

Assim, todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!

[...] E, não obstante, como tudo parece feliz e repousado! Os jornais conversam baixinho e devagar uns com os outros. O parlamento ressona. O ministério, todo encolhido, diz aos partidos - chuta! As secretarias cruzam os braços. O tribunal de contas, lá no seu cantinho, para se entreter, maneja, sorrindo, as quatro espécies. A polícia, torcendo o bigode, galanteia as cozinheiras. O conselho de Estado rói as unhas. O exército toca guitarra. A câmara municipal mata em sossego os cães vadios.

Os fundos descem, descem, e descem há tanto tempo que devem estar no centro da Terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos. Deus faz a sua Primavera.

[...] Toda a Nação vive do Estado. Logo, desde os primeiros exames do Liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e garantia de futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo a ser deputados.

[...] Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse.

[...] Ninguém possui ideias originais. Há quatro ou cinco frases, feitas de há muito, que se repetem. depois, boceja-se. Quatro pessoas reunem-se; passados cinco minutos, murmuradas as trivialidades, o pensamento de cada um dos conversadores é poder livrar-se dos outros três.

[...] E todo o País não é mais que uma agregação heterogénea de inactividades que se enfastiam.

É uma Nação talhada para a Ditadura - ou para a Conquista. "


Isto, Senhoras e Senhores, foi escrito em 1871, num regime de Monarquia Constitucional e da Regeneração de Fontes Pereira de Melo. Foi há cerca de 136 anos. E, agora, pergunto-vos: em 2007, com a nossa Democracia, com a nossa presença na União Europeia... Estaremos assim tão diferentes?