... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, April 17, 2008

Ódios de Estimação

Quando era muito mais jovem (e posso dizê-lo plenamente porque sou trintinha e, portanto, faz todo o sentido dizer estas frases sobre a adolescência suspirando com fingido pesar) fazíamos umas listas muito engraçadas sobre os nossos amores de estimação. As listas tinham coisas tão díspares e essenciais à vida como "caminhar à chuva", "enroscar-me no sofá quando chego a casa", "morangos", "o rapaz da terceira casa a contar da esquerda quem sobe a rua", ou "gupis". Até que um dia, uma de nós se lembrou de fazer a lista dos ódios de estimação e a vida não mais foi igual. Chegámos à conclusão que o ódio também era essencial. De facto, para algumas de nós era fonte sustentável de vida, uma espécie de versão repugnante da paixão. Iargh. Horrível, não é? Mas lá que era assim, era.

Explico melhor: há aqueles para quem um odiozinho por outro alguém é profundamente acarinhado, muitas vezes por pormenores irrelevantes - a maneira como ele descasca a fruta (para já, porque é que tira a casca da maçã quando seria muito mais normal e saudável comê-la, esse snob de treta!), os foulards pirosérrimos que usa (giros caso fossem usados por outra pessoa, claro está), a maneira como ajeita "aquele" cabelo, os trejeitos que faz e as piadas que conta. Meu Deus, como é possível que mais ninguém repare nestes atentados sociais?

As pessoas que alimentam odiozinhos não procuram fugir deles. Antes fazem de tudo para encontrar o seu desamor, para poderem fazer aquela catarse e despachar-se dos seus maus fígados num indivíduo que escolheram a dedo. Adoram dar de caras com ele (casualmente, já se vê...) para poderem coleccionar mais umas quantas razões, inteiramente justificáveis, para melhor e mais largamente o odiar.

O mais curioso é que quando lhes perguntamos porque é que não gostam de determinada pessoa (construção verbal muito suave a que logo retorquem "Não gosto?! Eu não posso com esse gajo!"), não conseguem encontrar uma razão plausível. Até admitem que ele possa ser "um bom tipo, faz algumas coisa generosas, mas eu cá tenho-he um pó!", o que é ainda mais extraordinário. A quantidade de pessoas que odiava a Madre Teresa de Calcutá, por exemplo, é flagrante. Até houve um senhor que se deu ao trabalho de escrever um livro com todos os pequeninos podres que encontrou sobre ela, a que chamou, muito sugestivamente, "The Missionary Position".

Conclui-se que os odiozinhos não são, de modo algum, baseados na racionalidade ou naquilo que nos fizeram. O odiado não tem culpa alguma no cartório na maior parte dos casos. Os ódios garndes - logo, não estimáveis, mas sim aqueles que nascem das entranhas, vulgarmente confundidos com medo - não são para aqui chamados porque, obviamente, advém de causa justa (o que é sempre difícil de determinar, mas existe na cabeça de quem o sente, pelo menos).

É muito curioso ver que os odiozinhos de estimação ocupam imenso do tempo livre de quem os tem. Aliás, estou convencida que quanto menos tempo há para as paixões, mais há para os ódios, mas esta teoria é inteiramente pessoal e subjectiva, porque na minha lista de ódios só havia "ganchos no talho com carne de porco pendurada", "todas as formas de hipocrisia" e "ser obrigada a dizer que estou a divertir-me quando não estou e que gosto quando não gosto". Pensei incluir o professor de Filosofia mas depois achei que não, porque era muito claro que ele me odiava a mim e a quase toda a gente, sendo certo que todos o odiavam. Não fazia sentido. Outra coisa importante sobre os odiozinhos é esta: é quase impossível nutri-los por alguém que sente algo do género por nós. Um odiozinho não é uma retribuição. É algo inato, que nasce da embirração pura. Muito naturalmente, diga-se.

Para que servem os odiozinhos, para além da óbvia função de fazerem quem os destila catalizar os seus maus sentimentos todos para uma criatura única? Bom, do ponto de vista orgânico causam a quem odeia uma data de problemas  porque lhe sobem a tensão arterial, a angústia e, em casos mais graves, conduzem a uma tal revolução que quase estamos perante uma pré-paranóia. Socialmente, também servem para que o odiado seja valorizado. Afinal, está-se a atribuir-lhe suficiente importância para lhe dedicar tanta energia e tempo (não interessa se positivo ou negativo). De facto, o contrário de uma paixão seria a indiferença e não o ódio, como todos sabemos. Mas essa história é outra...

Resumindo: um odiozinho de estimação poderá até nascer, mas o melhor é dar cabo dele pela raiz. Bom mesmo é gastar o nosso tempo, que é tão pouco, com a primeira lista.