A Maçã é o fruto mais importante do Mundo Ocidental. Não sou feroz amante de maçãs, mas defendo-as, com unhas e, sobretudo, com dentes. É que sem maçãs o Mundo não seria tal como hoje o conhecemos, pois todos sabemos que a condição humana, a sua experiência e sensibilidade repousa, bem apoiada no braço direito na sua História, mas não menos apoiada no braço esquerdo nos seus Mitos. É a Literatura que faz com que os Mitos – todas as histórias que a Humanidade criou para explicar as formas do mundo e suas criaturas - prevaleçam. Ora, não há Mitologia no “nosso” Mundo sem Maçã.
Comecemos pela Grécia Antiga. Eris, Deusa da Discórdia, usou uma Maçã dourada para os seus propósitos. Atirou-a, muito apropriadamente, para o meio de um matrimónio onde estavam presentes todas as deusas, o que não seria nada de extraordinário, não tivesse esta a inscrição “para a mais bela”. Zeus não se quis envolver, pois se tinha chegado a líder foi também pela sabedoria de ficar sempre calado em disputas no seu harém e nomeou o pobre Páris para decidir qual era a deusa mais bonita. Em troca da Maçã, cada deusa lhe ofereceu o que tinha: Hera deu-lhe poder, Atena, sabedoria e Afrodite, amor. Páris não pensou duas vezes, deu a Maçã à última e… assim começou a Guerra de Tróia, que durou dez anos, e teria durado mais se não fosse a brilhante ideia do cavalo de Ulisses. Por causa de uma maçãzinha… Nalgumas das línguas indo-europeias, há resquícios desta lenda – em holandês e em alemão, a expressão “maçã da discórdia” identifica desarmonia, além de haver um lugar com o mesmo nome no bairro Eixample, em Barcelona.
Hércules, o semi-deus dos doze trabalhos, também se viu aflito com Maçãs. Teve de roubá-las do Jardim das ninfas Hespérides (ao que parece, localizava-se na Ibéria), porque a Maçã era o pomo da imortalidade.
Na mitologia nórdica, também assim acontece – os deuses alimentam-se de maçãs para garantir não só a eterna vida como a juventude.
A cultura judaico-cristã, a que a realidade açoriana está mais ligada, assenta num mito primordial que envolve o quê? A Maçã! A serpente bem podia ter oferecido a Eva outro fruto que expulsasse a Humanidade do Paraíso… Mas não. Deus permitiu-lhes comer tudo, excepto o “fruto da árvore da sabedoria” (ou da consciência, dependendo das traduções). Curiosamente, se formos investigar, verificamos que o fruto de Adão e Eva teria mais probabilidade de ser um figo ou uma uva – de acordo com o Zohar, texto da Cabala Judaica. Mas a nossa cultura ocidental, muito romanizada, melhor sorte não reservou para a Maçã, cujo nome latino é Malus domestica. Assim, aparentada etimologicamente com “má” logo de entrada, previa-se para a Maçã um mau futuro e muita especulação…
Na mesma senda de fruto poderoso e terrível, a Maçã faz parte dos imaginários infantil e juvenil: é com uma Maçã que a Madrasta da Branca de Neve – um conto cujo folclore se perde em 1700 - a envenena, e é uma Maçã que o herói suiço Guilherme Tell põe na cabeça do filho e parte ao meio com grande pontaria de arco e flecha, a arma por excelência do século XIV.
O cientista cá de casa (sim, nós pessoas das ciências humanas não somos cientistas) explicou-me que há uma razão de ser para o facto da Maçã ser tão importante: parece que era muito popular na base de alimentação do ser humano – por exemplo, os franceses, muito relutantes à introdução da batata quando esta apareceu a substituir os rabanetes e beterrabas, só se lhe renderam pela sua parecença morfológica com as maçãs; para convencer os conservadores citoyens a comer batatinhas foi preciso usar um estratagema e chamá-las pommes de terre. Achei isto muito factual e interessante, mas desfez-me um mito científico: então o Isaac Newton, ao raciocinar a Lei da Gravidade debaixo da macieira, estava apenas à espera de uma refeição fácil?! Coitado. Já naquela época, cientista sofria para o seu sustento…
Entretanto, nos últimos tempos, à custa do Novo Mundo, a Maçã ficou mais bem vista. Os americanos fizeram de Johnny Appleseed uma lenda e, logo, lendas patrióticas dos vastos campos de macieiras que ele terá plantado, alargando a frontier. Talvez por isso seja tradicional os professores mais simpáticos receberem dos alunos uma maçã vermelha, nos EUA. Na gíria do jazz moderninho, “Maçã” é uma cidade e a Big Apple é a maior de todas.
Claro que vos dei apenas um breve esboço do poder da Maçã ao longo dos tempos. Ah, e não pensem que é por um pecado de gula pessoal: dentro de mim, mora uma japonesa que ama o sabor de cerejas e a visão de sakura na Primavera. Não tenho o apetite de Agatha Christie que não conseguia escrever sem comer um cestinho de maçãs reinetas. Não posso, porém, deixar de reconhecer: culturalmente, onde estaríamos sem uma Maçã para as nossas catarses?