... "And now for something completely different" Monty Python

Wednesday, September 29, 2010

Contrabando Original - José Martins Garcia

Romance de 1988, Contrabando Original centra-se em Miguel, rapaz que cresce numa comunidade ilhoa, hipócrita e podre, que ele resume como “bando de abutres”, sedentos de sangue da dor alheia, recriminadores do prazer e ávidos a pedir, de mão estendida. A opinião pública revela-se fundamental para esta vida teimosamente concêntrica, cujos membros vêem a sua reputação eleita ou destruída ao sabor de uma instituição popular imemorial: o boato.


Na quietude vil onde tudo é murmurado, insere-se a família de Miguel que “cheira a naufrágio” e mora numa casa fendida a meio por um terramoto, essa fatalidade insular. A vida corre assim, por entre os rituais vazios, expressão máxima da imobilidade da Ilha e do “dever ser”, mas também por entre o quebrar de normas pela calada, sobretudo o incesto, esse “baptismo às avessas”, uma restituição maldita à infância que não houve.


O percurso de Miguel após emigrar é a tentativa de deixar a Ilha para trás: então, dispersa a sua identidade em estilhaços, desdobrando-se em rebelde, actor e cônsul, comprovando a desintegração do imigrante.


Numa linguagem muito directa, quase chocante de tão incisiva e irreverente, o picoense Martins Garcia, crítico sem receio, colocou o dedo na ferida neste Contrabando Original, que é, afinal, a história do tráfico fracassado de um ser que a si mesmo se trafica. 


Friday, September 17, 2010

Europeu, mas pouco

Quando Portugal se juntou à então Comunidade Europeia, eu estava na Primária. Decorámos muita coisa relativa aos 12 países: de repente, o país descobriu uma nova consciência europeia que ia além do Festival Eurovisão da Canção. Mas éramos só 12, atenção. Os restantes, não eram bem europeus, i.e. não eram “da nossa comunidade”. Foi uma coisa que me custou muito a entender: então havia europeus mais europeus que outros? Sobretudo porque os franceses apareciam então como as mentes criadoras da CE enquanto os ingleses, embora lá estivessem, tinham um figurino à parte. Parêntesis para dizer que tenho elementos de outros países na minha família e a coisa gerava algumas conversações, nem todas pacíficas. Quando Portugal se juntou, já havia Parlamento Europeu, já tinham sido abertas as fronteiras do chamado Espaço Schengen (uma coisa muito importante na minha vida) que permitia a livre circulação dos “nossos” sem passaporte e, nesse mesmo ano, passou a haver a bandeira da CE e o European Act, portanto passou a haver um símbolo de identidade e uma compartimentação legal.


A União Europeia, mal ou bem, foi crescendo, baseada naqueles princípios iniciais que apelavam à descentralização e ao contrário do(s) nacionalismo(s), ou não fossem alguns dos fundadores revoltosos contra o fascismo da II Grande Guerra: “Não haverá paz na Europa se os estados se reconstituírem na base da soberania nacional” (Jean Monnet); “A UE significa estar consciente de pertencer a uma família cultural e ter vontade de servir essa comunidade em espírito mútuo sem motivos escondidos de hegemonia nem a exploração egoísta de outros” (Robert Schumann).

Em 2006, foi o Ano Europeu da Mobilidade dos Trabalhadores (eu também não vivia no país do meu passaporte). O Comissário Europeu da Igualdade e Trabalho disse na época que “não havia uma cultura real de mobilidade na Europa” porque “o trabalho tinha-se tornado móvel, mas os trabalhadores não […] devido a incertezas e medos”, uma situação que a Europa queria melhorar, pois “todos deviam aproveitar a oportunidade de experienciar o gosto da sua herança europeia” (Vladimir Spidla).

Em 2010, será só a mim que me parece que a política Sarkozy - cujas variadas medidas de expulsão de imigrantes (por serem ciganos, por não terem meios duradouros de subsistência, por agredirem a polícia, etc) ou de retirar a nacionalidade francesa são bem conhecidas - completamente contraditória a todo este movimento? Não será, exactamente, um retrocesso aos nacionalismos exarcebados que motivaram guerras na Europa ainda bem frescas na nossa memória? Essas mesmas guerras cujas feridas o nascimento da UE procurava ajudar a cicatrizar…

Naturalmente que o caso Sarkozy é um paradigma não só de crueldade mas também de ridículo, se atentarmos na sua história pessoal: filho de húngaro, neto de grego, ex-mulher descendente de moldavos e espanhóis e actual primeira dama italiana que apenas adquiriu a nacionalidade francesa pelo casamento com o Presidente. Toda a sua questão contra os não-franceses (ou os não puros-sangue, se é que isso existe) é um problema que quase apostaria ter uma raiz pessoal, como a questão hitleriana – o Führer sempre se envergonhou das suas origens que não eram minimamente “puras”…

Com cada ditador, o mundo – o único que temos - dá passos atrás, caminhando de costas para a visão, o enriquecimento, a abertura. Fernand Iaciu é o violinista principal da orquestra de Lille, França. É romeno. Em 82, pediu asilo político e ficou: “Deixei a Roménia com o violino e uma mala, vim para o desconhecido […] Mas o que vale a pena na orquestra é que somos muitos de diferentes países e todos trazemos algo de diferente à música por isso mesmo.” Nem todos tocamos violino, mas todos temos algo a dar ao mundo onde escolhemos viver.

Monday, September 13, 2010

“Gato que brincas na rua […] invejo a sorte que é tua”

Ailurofilia, palavra feia para bom sentimento, significa amor aos gatos (de aílouros, “gato” em grego). Muitos escritores têm uma verdadeira paixão por “felinos domésticos”, paradoxo resolvido por Victor Hugo que dizia que Deus fez o gato para dar ao Homem o prazer de acariciar o tigre. Não se trata, porém, só de prazer mas de fascínio, o que torna a ligação insubstituível.


Mark Twain, “o primeiro escritor verdadeiramente americano”, estava convencido que só podia encontrar conforto numa casa onde houvesse um gato feliz. Admirava nos gatos a ânsia de liberdade, a inteligência maliciosa e “essa digna reserva distante com que olham o homem que os maltratou”.


O instável e perturbado Ernest Hemingway, prémio Nobel suicida, dedicava aos gatos toda a admiração que a sua personalidade narcisista e bipolar era capaz. Nas fotos familiares de Hemingway, estão sempre presentes. Hoje, a sua casa-museu em Key-West – onde viveu com a 2ª das suas 4 mulheres – é também a casa de 60 gatos peculiares com 6 dedos nas patas,  tal como tinha o gato oferecido a Hemingway por um capitão de navios. Alguns foram retirados da rua e são mantidos em sua memória.


Émile Zola, o naturalista que desejava retratar impiedosamente as misérias humanas, “convulsões fatais do Novo Mundo” na sua saga Rougon-Macquart, comovia-se até às lágrimas perante gatos. Um dos seus contos mais interessantes é contado na primeira pessoa por um destes felinos: n’ “O Paraíso dos gatos” , um angorá vive principescamente em casa de uma prepotente dona, dormindo em almofadas e comendo carne. Finalmente, decide aventurar-se na liberdade dos telhados, onde passa por muitas desventuras que o fazem escolher regressar à vida plácida anterior, embora saiba que será espancado a chicote como castigo pela dona  antes de regressar às comodidades anteriores: “Enquanto ela me batia, eu pensava, deleitado, na carne que, depois, ela me ia dar.” Seria o angorá de Zola masoquista? Não mais do que todos os humanos que prescindem conscientemente da liberdade em favor de estabilidade, comida e tecto.  Afinal, o paraíso é diferente dependendo das necessidades de cada gato…


Ambas as escritoras Patricia Highsmith e Colette – diferentes tanto no estilo e temas como na época e local onde nasceram - escreveram sobre originais triângulos amorosos entre uma mulher, um homem e um gato, em que a mulher se divide em atenções perante esses dois seres machos que, embora de espécies diferentes, lutam como rivais pelo seu carinho. Todos conhecemos histórias de animais ciumentos de humanos, mas é sempre pouco correcto dizer que existem homens ciumentos até dos nossos animais de estimação. Pois eles andam aí!


Outro prémio Nobel, o poeta T.S. Elliot,  escreveu “Old Possum’s Book of Practical Cats” , sendo Old Possum a alcunha que lhe tinha dado o também escritor Ezra Pound. O livro é um verdadeiro tratado psico-sociológico felino, apresentando-nos várias personagens, que, curiosamente acabaram por ser muito mais conhecidas pela sua adaptação musical: CATS é, desde 1981, cartaz na Broadway e no West End.


A lista é muito extensa. Sem querer entrar em endeusamentos arriscando parecer que sou uma adoradora da deusa egípcia Bastet, a verdade é que é inegável a influência que o Gato tem tido enquanto inspirador literário. Não que isso interesse ao Gato, claro. Ele está acima de todas essas filosofias mundanas… 

A Casa Fechada - Vitorino Nemésio

A Casa Fechada é o único livro de novelas de Nemésio, obra que apresenta a sensualidade como pulsão instintiva, o destino como força inescapável, a viagem (sonhada ou real) como elemento central, o abraço entre a vida e a morte. A sua ousadia, de fino instinto psicológico, foi  muito mal recebida pela crítica aquando da sua publicação, sendo, ainda hoje, um dos livros menos analisados e conhecidos do autor, o que contribui para um enigma desde já condensado no título.


O Tubarão descreve a hesitante iniciação erótica de uma rapariga na praia, a mesma praia que serve de cenário para a morte do bicho predador “de cheiro acre, que nada tem de perfumado, mas que se lhe afigura convidativo.”


Negócio de Pomba fala-nos de um  retornado do Brasil, desenquadrado e atormentado pelo estático sedentarismo da sua ilha e por uma sexualidade amordaçada em medos antigos.


A Casa Fechada conta-nos a passagem do segundo para o terceiro casamento de Luís, pai de duas crianças, filhos da primeira união. “Nesta casa, os mortos mandam mais que nós” diz a segunda mulher, cuja relação com os meninos é agreste. E também ela mandará, em breve… Um conto profundamente conhecedor dos desejos da mente humana, no que ela tem de mais negro.


 Um dos livros mais transgressores de Nemésio, A Casa Fechada foi editado em 1937, ainda antes da consagração com Mau Tempo no Canal.


Friday, September 3, 2010

A sociedade WEIRD

Em Maio deste ano, 3 cientistas da Universidade de British Columbia – Joe Henrich, Steven Heine e Ara Norenzayan – publicaram um estudo que caracteriza a sociedade “Western, Educated, Industrialized, Rich and Democratic”, em acrónimo WEIRD, intitulado “The weirdest people in the world?”. O estudo questiona a fundamentação das teorias psicológicas feitas até hoje, sendo estas feitas com base num corpus que tem em conta apenas elementos desta sociedade, pressupondo a priori que não há variação significativa na população humana em termos comportamentais e intelectuais, como sejam percepção, concepção, motivação, senso ético, cooperação, QI. Segundo os autores, nada há de mais errado. Os WEIRD não só representam numericamente apenas 12% da raça humana como são (tal como o nome indica) estranhos, reagindo de modo diverso aos restantes seres; logo, não devem constituir base de dados fiável, muito menos única para teorizar sobre a mente e acção humanas.


Comprovando isto mesmo, os cientistas foram até ao Chile e Perú jogar Ultimatum com a tribo indígena dos Machichuenga, que até hoje vive na selva mantendo as suas tradições originais. Importa explicar que o Ultimatum é um jogo recente de duas décadas, que têm sido usado em experiências psicológicas e também económicas. Funciona assim: o jogador 1 tem uma determinada soma de dinheiro e tem de fazer uma oferta de uma parte do que tem ao jogador 2. Se ele aceitar a oferta, cada um fica com a parte que lhe coube; se ele rejeitar, o jogador 1 também fica sem nada.


Quanto daria você? As experiências provam que, em média, um jogador 1 WEIRD oferece cerca de metade, regra geral 48%. Um WEIRD tem a noção de que uma oferta demasiada baixa leva a que o seu “opositor” não aceite. Com razão, pois um jogador 2 WEIRD tem tendência a rejeitar ofertas abaixo de 40% do valor total, pela injustiça que vê na proposta.


Parece que a Humanidade não WEIRD que jogou este jogo (Machichuenga incluídos) pensa de forma muito mais brilhante do ponto de vista económico: os primeiros nunca oferecem metade do dinheiro que têm e os segundos jamais recusam qualquer oferta de dinheiro grátis, ainda que seja pouca.


Claro que esta é apenas a experiência ponto de partida para um artigo controverso que propõe uma re-organização metodológica das ciências comportamentais num sentido de cruzamentos culturais, dos quais têm andado afastadas ao julgar tudo pelo padrão WEIRD. É a nova onda da Psicologia Cultural de Shweder, que começou nos EUA mas que a Viena de Freud já abraçou largamente.


Henrich e os co-autores do estudo dizem que os Ocidentais têm intuições erradas acerca da Psique humana e dão vários exemplos, e.g.: todos conhecemos o teste das linhas, uma simples e uma com uma seta, na qual julgamos que uma é menor por ilusão óptica. Parece que os WEIRD são os únicos a sofrer dessa ilusão. Até as tribos do deserto do Kalahari sabem que as duas linhas têm o mesmo tamanho, claro, só um WEIRD é que não vê!


Conclusão: ainda é prematuro dizer quão estranhos são os WEIRD, mas parece que apenas partilham com o resto da raça humana as ostentações de orgulho e vaidade e as emoções do acasalamento. Tudo se torna, porém, mais difícil de estudar quando os únicos humanos dedicados à sua própria teorização são WEIRD...


O estudo de Henrich abre a porta para que o cientista comportamental do Ocidente deixe de se olhar como superior e passe a encarar muitas variáveis possíveis dentro dos padrões humanos, o que levará a revolucionar um paradigma que já não serve há muito, num mundo em que crianças de pais de duas culturas diferentes vão viver para um país terceiro e continuam a ser avaliadas evolucionalmente de forma antiquada.