O meu fisioterapeuta tem-me ensinado algumas coisas. Parêntesis para dizer que devia ser feito um estudo à ligação que se desenvolve com um fisioterapeuta ou massagista quando temos um problema de mobilidade (e o meu é apenas temporário e não impeditivo, imagino os realmente graves!). Poucas relações misturam tanta ambiguidade de raiva e gratidão. Mas adiante. Eu desconhecia, até agora, algo chamado trigger points. Parece que há uns pontinhos-gatilho nos nossos músculos que se irritam e são extremamente dolorosos para nós quando estimulados. Perdoem a minha definição leiga. Quem não entendeu pressione muito fortemente com as pontas dos dedos a zona do pescoço e das costas e, se for stressado (portanto, um humano average, funcionário público ou, em alternativa, desempregado), encontrará trigger points. O que há de mais curioso acerca dos trigger points é que, se continuarem a pressionar com a mesma força durante 30 segundos, a dor que ainda há pouco era insuportável… desaparece! Como se explica isto? perguntei, ingenuamente. Claro que devia ter adivinhado: o ser humano habitua-se à dor e anestesia-se a si mesmo, para melhor aprender a viver com ela. Somos geniais na arte da sobrevivência.
Se somos capazes de anestesiar uma dor física para melhor a suportar, também não ficamos atrás com o anestesiar de torturas psicológicas. Disso é bem revelador a Síndrome de Estocolmo, que, apesar de ter sido um termo cunhado para reféns (no célebre assalto ao banco sueco) e posteriormente também para vítimas de rapto e de violência doméstica ou prisioneiros de qualquer espécie, pode servir para mais situações de abuso. De facto, pessoas que vivem longo tempo numa situação abusiva arranjam sempre mecanismos de defesa por uma questão óbvia de necessidade. Começam, então, a achar que qualquer não-abuso (i.e. qualquer acto normal, como deixá-las sair de casa ou permitir-lhes o acesso a um telefone - reparem nos verbos condicionantes e propositados) por parte do abusador é um acto de bondade deste ao invés da expressão da liberdade natural e individual dos abusados.
Se um abusador é sempre terrível, a vítima responde com ódio e em breve sairá da trama. Porquê? Sobrevivência. Mas a grande maioria dos abusadores é esperto e joga de outro modo. De vez em quando, oferece simpatia e, em casos extremos, o abusado sente mesmo a falta de abuso ocasional como uma delicadeza per se. Dá-se um desfasamento dos contextos reais em que vivem os restantes seres, pois de outro modo o abusado não poderia continuar a manter a sua sanidade – há que lembrar que estas pessoas vivem em ambientes loucos. Para nos mantermos sãos quando tudo à nossa volta é irreal e vivemos num ambiente de enorme e constante tensão emocional e física, temos de nos desvincular durante algum tempo da perspectiva normal, pois o valor mais alto a preservar é o da vida. Deste modo, o abusado acaba por se ver envolto numa trama na qual percepciona as próprias saídas como perigosas e capazes de o magoarem, porque a sua única relação com o mundo do qual está isolado depende do opressor. O isolamento do abusado é necessário para que o abusador lhe confira não só a sua perspectiva dos acontecimentos (o que torna o abusado dependente para as necessidades básicas e até certo ponto identificado com o abusador nos mais íntimos detalhes) mas também para reforçar o poder absoluto do abusador, que assim se torna cada vez mais megalómano e perigoso. Afinal, todo o abusador é um ditador, mais ou menos consumado.
A Síndrome de Estocolmo é a “gratidão primitiva pelo presente da vida” (Frank Ochberg), como se cada minuto que um abusador nos deixa viver fosse precioso, pois, em boa verdade, o abusado crê que o abusador tem a vida dele nas mãos e fica-lhe grato por esse respirar, ainda que em condições sub-humanas. Também os bebés formam laços emocionais com qualquer ser humano mais próximo, tentando que este lhes dê o que necessitam - não é só um mecanismo identificativo, é o click da sobrevivência a funcionar.
Resumindo: o instinto de sobrevivência é o instinto-mor de todo o animal, incluindo o humano; quer queiramos quer não, o homem habitua-se a tudo, mesmo ao mal, minimizando-o como pode, até do ponto de vista da sua natureza, para sobreviver. E é por isso que a gente responde ao “tudo bem?” com “não venha a pior!”, ou seja, não está nada bem mas o pessoal até aguenta e só deseja que não piore porque a este bicho ruim a gente até já se habituou…