... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 24, 2010

Dar



“Dar” é um verbo difícil de conjugar. Ainda hoje me falaram numa criança que não consegue conjugar bem o pretérito perfeito do indicativo e diz “eu di” em vez de “eu dei”. Mas claro que não é isto a que eu me refiro quando falo na difícil conjugação desta palavra. Todos os nossos problemas fossem linguísticos quando falamos de “dar”.


Confesso que fico um pouco irritada com aquilo a que se pode chamar “caridadezinha”. No Natal, ela atinge o seu auge. Há pessoas que pagam salários absurdamente miseráveis à empregada que lhes limpa a sanita lá de casa, isto para além de a tratarem como se ela fosse um verme que se passeia numa casa de família onde todos são rosas de colecção; essas mesmas pessoas gostam imenso de fazer donativos espectaculares para causas sociais que se vejam, isto é, que sejam notícia, que ponham o seu nome em destaque no jornal da terra. Dizem-me que são pessoas generosas. Talvez a palavra “generosidade” agora tenha outro significado que não seja “dar livremente sem esperar algo em troca” e eu não tenha dado por isso… Tenho de me actualizar.


Do mesmo modo, incomodam-me as pessoas que se aproveitam das desgraças alheias (sejam elas individuais como uma orfandade, ou colectivas como um sismo) para exibirem ao mundo a sua pretensa largueza de coração. A verdadeira generosidade é recatada. Não precisa de testemunhas. Prefere até não as ter, por respeito para com quem recebe, pois quem recebe está – quantas vezes! – envergonhado por precisar de receber.


Os pretensos generosos são, afinal, narcisistas em busca de um bocadinho de estrelato, de palmas e de elogios. Querem receber qualquer coisinha. E não é pouco.


Também há quem sofra de um mal oposto. São os que dão demais. Entregam-se todos ao mundo. Este género é bem mais raro, claro. Constitui outro tipo de problema, não para o mundo, mas para os próprios, pois dando tanto – do seu tempo, das suas capacidades, das suas vidas – estes seres acabam por constatar que pouco tiraram para si. Vivem sempre em função do próximo, numa perpétua atitude de imolação. Como tal, também são infelizes.


“Dar” também pode ser um verbo perigoso. A este respeito, há uma lenda dos Andes, que o grande  H.G.Wells adaptou para conto e chamou-lhe “The Country of the Blind”. Num vale perdido e muito fundo, quase sem luz, de geração em geração acabou por se desenvolver uma tribo de homens inteiramente cega. E, na verdade, eles não necessitavam de ver. Com o passar do tempo, esqueceram que existiam não–cegos, pois os seus próprios corpos eram adaptados à cegueira, com órbitas fundas e ouvidos apurados. Certo alpinista desastrado caiu nesta terra perdida, sobrevivendo da monumental queda por milagre. Ao perceber que estava numa terra de cegos, ficou aterrado… mas também fascinado. Quantas coisas ele podia ensinar àquela gente! Como seria bom fazê-los descobrir tanta coisa que até aí lhes estava vedada! Guiá-los pela mão para as maravilhas a que só ele, alpinista, tinha acesso. Começou a falar-lhes do que via e de como sentia as coisas, imbuído de um sentimento generoso (e também, porque não confessá-lo?, da ideia de que ele era o único com olhos numa terra de cegos…). Não foi preciso muito tempo para que todos o julgassem louco e o encarcerassem. Como o alpinista continuava a falar e a tentar dar-lhes um pouco do seu mundo, decidiram que a sua loucura (pois que era certo que de loucura se tratava esta sua diferença teimosa dos restantes) era devida às protuberâncias que ele tinha nos globos oculares – coisa que eles não tinham – e resolveram que o pobre alpinista necessitava de ser curado para ficar como todos eles. Decidiram ser magnânimos e tirar-lhe os olhos. Foi então que o alpinista percebeu que “não se pode lutar alegremente com pessoas cuja base mental é diferente da nossa” e que nem sempre o velho provérbio sobre o homem com um olho ser rei é verdadeiro – pelo menos, não o é perante uma multidão de gente que nunca viu e se recusa a ver. O alpinista suicidou-se, vendo a bela paisagem.


“Dar” é complicado. Mas continua a ser a única forma de viver para alguém e de viver connosco. Tem é um equilíbrio muito frágil, todos os dias do Ano, quer seja ou não Natal. 


Thursday, December 23, 2010

Nós e Laços



“Natal é a festa da família”, toda a gente sabe. Mas “família”, hoje em dia, é um vocábulo que não significa o mesmo que significava antigamente e negá-lo seria mais ou menos como dizer que o Menino Jesus é mais conhecido que o Pai Natal. O que faz com que tantas pessoas suspirem por estar sozinhas no Natal e outras tantas suspirem por ter de aturar (literalmente) os familiares que, por azar genético, lhes couberam em sorte, durante esta quadra? Como não sou antropóloga – e logo não sei o que, de modo transversal, culturalmente se entende por família hoje em dia – lembrei-me de ir espreitar os últimos estudos feitos sobre a dita. Sem surpresa, verifica-se que hoje andar na escola e ser filho de pais divorciados ou de famílias monoparentais não é incomum; incomum é aquele miúdo cujos pais ainda vivem juntos (note-se a utilização do advérbio “ainda”, que prevê uma fatalidade não muito distante). Cada vez mais usual, é aquele menino que tem várias famílias: a da mãe, a do padrasto, a do pai, a da madrasta, a do ex-namorado da mãe de quem ficou amigo (veja-se a acumulação de avós que vai aqui… e de prendas natalícias!).


Qual é a única coisa que vale a pena investigar aqui? Precisamente: porque é que, mesmo sabendo que a família - enquanto instituição - é aquilo que podemos chamar uma empresa falhada, porque motivo se casam hoje as pessoas? Tal como eu, também uma equipa do Pew Research Center (em Washington) colocou a mesma questão.


Aparentemente, segundo o PRC, até há algumas gerações atrás (o estudo incide apenas sobre os últimos cinquenta anos), as mulheres casavam para terem dinheiro e os homens casavam por razões sexuais. Hoje em dia, visto que a esmagadora maioria das mulheres trabalha e tem um estatuto económico independente dos homens, não precisa de casar para sobreviver; do mesmo modo, actualmente, dada a liberação sexual, ninguém espera pelo casamento para ter relações sexuais, portanto os homens não precisam de casar para garantir esse bónus. Aliás, acho esta conclusão do estudo do PRC muito curiosa: se os homens casavam pelo sexo e as mulheres por dinheiro, o que era o casamento senão a prostituição legalizada?


Mas voltemo-nos para os dias de hoje, para não ofendermos os nossos familiares mais velhos. As pessoas, actualmente, não acreditam no casamento e, o que é mais, acham que enquanto modo de vida está condenado à extinção. Mas casam. É fácil de perceber a primeira parte da premissa. São pessoas que já conhecem os casamentos desfeitos dos pais (não raro os segundos casamentos desfeitos de um lado e doutro), sendo que a maior parte também já se “descasou”. Porque raio querem voltar a dar o nó? Diz este estudo que o casamento é a medalha de mérito da nossa sociedade, a única forma de se mostrar que se é bem sucedido. Por outras palavras, um solitário é seguramente visto como um outsider e alguém que falhou. Pode ter muitos amigos e ter a mamã e cem namoradas (podem construir a frase no feminino que dá igual), mas não teve quem lhe quisesse fazer canja de galinha quando estivesse doente. Looser. Ou seja, paradoxalmente, os não-casados não são casáveis. Não são atraentes para o sexo oposto, pelo menos a longo termo. E eles sabem disso (ora não!).


Com quem (alguns cínicos dizem contra quem…) casam as pessoas? Isso também mudou. Até há pouco tempo, os homens casavam sempre com mulheres que sentissem ser intelectualmente inferiores ou que ocupassem uma posição social menos visível. Ex: Médicos ligavam-se a enfermeiras, executivos a secretárias, comandantes a hospedeiras. Hoje, as pessoas tendem a casar dentro da mesma faixa (por assim dizer), por acharem que assim há mais complementaridade na união. Também é interessante que os segundos casamentos optem mais por este modelo do que os primeiros, nos quais se verifica ainda uma grande necessidade de domínio – inclusivamente no aspecto social - de um parceiro sobre o outro. Eu diria que nas uniões seguintes também, só que a necessidade de domínio tem vergonha de se exteriorizar porque não é politicamente correcta – afinal, estamos na era da igualdade!


Claro que estou a deixar de lado questões importantes como a idade. Antes, o casamento era a entrada na idade adulta. Agora, as pessoas casam cada vez mais tarde e com um grau cada vez maior de educação. Neste drama etário entram duas questões: primeiro os filhos, depois as finanças (again!). Embora não considerem ter filhos uma razão para casar, as pessoas colocam “ser bom pai/boa mãe” como um dos primeiros items para continuar com o parceiro. Mas após o/a deixarem, consideram os próprios filhos “uma pressão” – eufemismo para “fardo” - na sua (nova) vida: ou seja, é um nó que não conseguem desembaraçar e para o qual ainda se vêem socialmente pressionados a dispensar tempo e dinheiro (os mais simpáticos ou hipócritas até dispensam uma ou outra conversa para além do “tens tido boas notas?” e “estás bem de saúde?”).


Em relação às finanças, a crise parece motivar casamentos: muitos jovens adultos consideram não ter dinheiro para fazer vida sozinhos, mas a junção de duas vidas já permite pagar uma renda e livrar-se dos pais. Mecânico e pouco romântico? É o mundo que temos.


A propósito, o motivo pelo qual os casais mais discutem são “outros familiares”, sejam filhos ou pais. Se calhar, o melhor casamento foi mesmo o de Adão e Eva, que consta só terem começado a dar-se mal quando apareceu um terceiro elemento, pois enquanto estavam só os dois viviam mesmo no Paraíso.


Há notas importantes a retirar deste estudo. Primeiro que as pessoas independentes – num sentido lato, tanto material como emocional, leia-se: os que não têm necessidade de andar na sombra de outro - têm muita dificuldade em encontrar parceiros e formar relações estáveis, sendo ironicamente as que dão melhores duplas, por serem mais confiantes e logo mais capazes de dar de si. Segundo, que a nossa sociedade deu direitos legais à união de facto… mas culturalmente não a respeita como um compromisso, nem sequer em termos de fidelidade: “Temos novas regras de intimidade, mas não sabemos bem quais são. Não se respeita uma coisa que não se aprendeu” diz o estudo do PRC “As pessoas não têm expectativas quanto à união de facto e por isso se portam como solteiros, coabitando como casados.” Complicado de entender? Imaginem se fossem vocês as criancinhas dos ditos.


Afinal, porque se casam as pessoas? Como diz um amigo: “Para se poderem divorciar com o mínimo de impacto social a seguir. Tem mais estilo do que sair de casa apenas!”

***

Leiam mais em: Pewsocialtrends.org/family: The Decline of Marriage and Rise of New Families. E não se esqueçam de comprar prendas para os irmãos dos vossos irmãos que não são vossos irmãos mas que também fazem parte da vossa família. Complicado? Muito comum até. Se vocês não têm um, já estão na prateleira dos antiquados! Vamos lá a ver se resolvem esse assunto em 2011.


Nota: Este artigo teve uma versão bem mais condensada que foi publicada dez dias antes no Açoriano Oriental e que pode ser consultada aquhttp://www.acorianooriental.pt/opinioes/readOpiniao/211698/

Tuesday, December 7, 2010

Vitorino Nemésio e a sua Ilha Natal: a Obra - Espelho do Ficcionista

Intro: O seguinte texto foi feito para ser oralmente apresentado (naturalmente de forma completamente diversa, como todas as apresentações em conferências e palestras) no V Encontro Cultural Açoriano, promovido pela Casa dos Açores do Rio de Janeiro.

Posteriormente, o RTP-Comunidades mostrou interesse na publicação do texto proferido na palestra, juntando algumas informações e fotos da mesma.
Ver aqui:
http://ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/?k=Vitorino-Nemesio-e-a-sua-Ilha-Natal-A-Obra-%96-Espelho-do-Ficcionista-CARLA-COOK.rtp&post=29252







Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Casa dos Açores por me ter convidado a vir hoje aqui falar um pouco sobre Vitorino Nemésio, vivendo convosco este encontro Cultural Açoriano no qual para mim é uma honra participar e que me dá a oportunidade de partilhar de mim, aprender, reencontrar conhecidos mas sobretudo conhecer novos amigos .


Queria sublinhar desde já que quando digo que vou falar “um pouco” de Nemésio não utilizo um eufemismo, porque Vitorino Nemésio é um mundo: David Mourão Ferreira (grande conhecedor de Nemésio na vida e na obra, a quem foram confiados os seus escritos após a sua morte) dizia dele: “nasceu com um talento multiforme que daria à vontade para mais dez autores e todos eles de primeira água: dois ou três poetas, dois ou três ficcionistas, dois críticos, um extarordinário filósofo da cultura, um cronista mulifacetado e ainda um biógrafo e um historiador” … A par de tudo isto, Nemésio viveu também com pluralidade, de locais e de experiências, pelo que é impossível abarcar tudo isto em 45 minutos. Mas já me debruçarei sobre este assunto.

Antes, porém, gostava de agradecer a simpatia e carinho extraordinários com que tenho sido recebida aqui e que é dificil expressar em palavras. Tenho-os sentido como uma emoção inesperada e extraordinária.

Igualmente gostava de partilhar convosco que é a primeira vez que estou a pisar o chão do Brasil. Isso é para mim uma emoção grande, porque apesar de já ter trabalhado e estudado noutros países, sendo imigrante também, nunca tinha estado aqui, mas para mim o Brasil é muito importante por razões pessoais, sendo uma delas o facto de ter um filho pequeno que está a aprender a falar e tem uma ama brasileira – pois hoje, ao contrário de antigamente, são os brasileiros que emigram para os Açores e não os açorianos que emigram para o Brasil; grosso modo, o ciclo inverteu-se. Ironicamente, eu que sou professora de língua portuguesa (variante europeia) para estrangeiros, chego a casa e tenho um filho que fala brasileiro. Estou a tentar perceber, dentro de mim, se isso é engraçado ou se significa que falhei no meu trabalho e como mãe!

Falando agora de Vitorino Nemésio.

Nemésio disse que a biografia era uma velha ciência, mas uma ciência que raro se deu por tal (escreveu esta frase num livro que fez aqui no Brasil, curiosamente, intitulado “Conhecimento de Poesia”). Quer isto dizer que a biografia não explica mas ajuda. A verdade é que todo o escritor se reflecte na obra de ficção que produz e que esta revela sobre ele muito mais do que ele suspeita ou talvez até desejasse.

O próprio Nemésio admitiu que a ficção libertava muito mais quem a fingia (ou seja, quem a escrevia) do que quem a lia. Ao lermos uma obra de ficção, estamos pois em presença de um momento catártico do autor, de um instante em que ele se revela, faz limpeza a si próprio (com perdão do vocabulário). Assim, podemos dizer que escrever é quase uma forma barata de ir ao psicólogo!

Porém, em Vitorino Nemésio não é muito fácil perceber esta evidência dado que Nemésio se refreia quando faz esta transposição para a escrita, escrevendo com muitos enigmas, intertextualidades, codificações que devem ser desvendadadas por quem lê. É o que ele denomina “contenção expressiva”.



A infância e a adolescência de Nemésio foram momentos cruciais da sua vida. Certo é que foram momentos cruciais para todos nós, pois que são os momentos que moldam a nossa personalidade e que fazem a diferença nas nossas atitudes posteriores. Se necessário fosse dar exemplos justificadores desta importância, bastaria recordar que um ser humano que sofre de Alzheimer, recorda até mais tarde os momentos da sua infância, esquecendo primeiro os outros períodos da vida.

Se para todos nós, esta importância é evidente, para um autor, estes períodos da vida assumem uma relevância acrescida - são um reservatório para a criação literária ficcional de onde ele retira a matéria-prima para as suas obras. A este respeito, Nemésio diz-nos: ¬¬¬¬¬

“Todo o escritor foi um espião disfarçado na infância e na adolescência. O lugar de nascimento, o da criação sobretudo determina no escritor o campo da experiência.” A experiência posterior é inevitavelmente modelada pelos primeiros anos da nossa vida - no caso de Vitorino Nemésio, nascido na Praia da Vitória (19-12-1901) e estudante em Angra do Heroísmo, os anos passados na ilha Terceira.

A proposito destes anos, Nemésio escreveu um romance denominado Varanda de Pilatos (1927), até hoje um romance esquecido, em grade parte eclipsado por essa obra prima da Literatura Portuguesa que é MauTempo no Canal. ¬¬¬

Visto que o tema deste V Encontro Cultural Açoriano é “Vitorino Nemésio e a Praia da Vitória”, decidi detalhar-me sobre este romance, o único que foca a ilha Terceira, um romance lamentavelmente pouco conhecido do público e não muito estudado pela Academia.

Varanda de Pilatos tem a ilha natal de Nemésio como pano de fundo, a ilha arquetípica e matriarcal, que sempre foi para ele o eixo do mundo.

Apesar das viagens de Nemésio, da sua experiência como professor aqui no Brasil e em Montpellier, viagens que também estão retratadas em vários livros ou conjuntos de poemas –e.g.: O Segredo de Ouro Preto; Caatinga e Terra Caída; Andamento Holandês; La Voyelle Promise – sentimos sempre que é a presença da ilha que ele procura em tudo … e que é à ilha que Nemésio retorna sempre, mesmo que não corporalmente, em ideal, até quando, por exemplo, se encanta aqui na Bahia com o culto do Divino.

Este romance, o primeiro e mais juvenil de Nemésio, acabou por ser um romance de que o próprio dizia não gostar muito, não por ter sido uma das suas verdes obras (como poderiamos pensar) mas sim porque imediatamente percebeu que tinha revelado nele muito da sua própria experiência e vida: “O que aí fica psicologicamente é a minha manta de retalhos” (in Dedicatória).

Na Dedicatória da obra (Nemésio dedica o livro à sua mulher, Gabriela Monjardino), é-nos explicado que Nemésio desejava juntar neste livro “a infância e a adolescência, o que há de transitivo à volta dos 15 anos, os sinais visíveis do ninho que se deixou de fresco dum lado; do outro, a primeira rajada de vida, um pouco de amor, a confusão que provocam sempre num jovem os primeiros passos decisivos”.

O protagonista é Venâncio, pura personificação de Nemésio.

No dia da partida de Venâncio de Vilório (i.e. da Praia da Vitória) para Angra, encontramos um quadro familiar em que o pai é atencioso em extremo e é a mãe quem lhe prepara um saco de livros e de doces, enquanto chora. Venâncio chora também, com muita dificuldade em abandonar esta família (à qual acresce grande número de tias), e com ela o mundo infantil que fica na terra onde passou os primeiros anos. Crescer é penoso para o jovenzinho de treze anos, mas a família também não lhe torna fácil o momento de emancipação.

Mas é chegada a adolescência de Venâncio que o obriga a um “corte umbilical” com a estrutura familiar e a um alargamento de relações pessoais e sociais, que lhe ampliam a visão do mundo. Não é por acaso que a adolescência é vista como um segundo nascimento pelos varios psicólogos que se dedicaram a estudá-la. É, todavia, um processo difícil para esta personagem, porque uma parte do seu todo afectivo ainda reside na infância. A sua socialização da afectividade está incompleta e o seu estatuto psico-afectivo - no momento em que deixa Vilório – encontra-se na posição hiper-delicada do adolescente frágil, que se prepara para ingressar num internato numa cidade, a seus olhos, grande.

Sabemos hoje, pelas Notas Autobiográficas de Vitorino Nemésio, que a mudança da escola primária que frequentava na Praia para o Liceu de Angra lhe foi particularmente dificil, sobretudo conjugada com a mudança do conforto da casa dos pais para a vida mais autónoma. Ele, que nunca fora um aluno brilhante (que se aborrecia na escola com a imposição do ditado, ironicamente indo fixar-se na escrita mais tarde), não conseguiu ambientar-se à mudança de cidade, apesar de estar na mesma ilha, e regressou à Praia ainda nesse ano. Só no ano seguinte voltou ao Liceu de Angra e ficou hospedado então em casa de uma tia a quem atribuía um papel muito importante na sua vida: a tia-avó Inácia, denominada Perpétua nesta obra Varanda de Pilatos - é na casa dela que Venâncio se instala quando vai viver para Angra.

Vejamos o que nos diz Nemésio acerca desses tempos: “Filho único, mimado por tias e primas sem número, não me adaptei ao pensionato angrense em que meu pai me meteu, apesar do carinho com que lá era tratado. Eu, criado numa vila pacata, via-me de repente instalado num casarão citadino, em plena Praça Velha, com um quartel de bombeiros por baixo e uma esquadra de polícia em frente.”

Do(s) mesmo(s) mal(es) se queixou o protagonista Venâncio que, pela pena de Nemésio, levou vida idêntica. Filho único de uma família onde imperavam mulheres com alguma possessividade e dominância, foi-lhe mais difícil a passagem à autonomia e a uma nova inserção social, embora a sua maturidade intelectual seja, pela mesma razão, mais precoce do ponto de vista cognitivo e racional, devido ao convívio constante com adultos em detrimento de uma companhia infantil. Para além disso, porque não possui o microsocial da fratria, só lhe foi proporcionado, até ao ingresso no internato em Angra, um confronto com os pais (e com as tias e as primas mais velhas; note-se que também não há primos dentro da mesma faixa etária e nem, curiosamente, do mesmo sexo). Deduz-se que o internato será um golpe duplamente chocante, para este Venâncio, que chora, no dia da partida, como se fosse “para a América”.

A relação de Venâncio com a tia Perpétua é, por regra, conflituosa, ainda que este conflito seja mais ou menos encoberto, porque o próprio adolescente se furta a uma oposição frontal e aberta. Naturalmente que enquanto ser em transição para a idade adulta, o adolescente passa, necessariamente, por uma fase natural de oposição à família. A revolta contra a família é símbolo de revolta contra a sociedade adulta, mas é uma revolta puramente simbólica, visto que a família nunca deixa de representar o laço com a infância que o jovem se recusa a romper completamente. Se o estádio infantil é para ele um nível a ultrapassar, é também uma ponte para o futuro, ou seja, a família acaba por constituir um problema: é o refúgio e o terreno natural e é, por outro lado, as amarras que devem ser cortadas para prosseguir com o crescimento individual a todos os níveis.

Notamos este duplo sentimento em Venâncio, em casa da tia Perpétua: por um lado, a necessidade fremente de independência, que se manifesta, por exemplo, na vontade de estabelecer o seu próprio horário, mesmo correndo o risco de desobediência; por outro, o apego às origens, simbolizado no nome de família. Em Varanda de Pilatos, há notáveis páginas de erudição histórica, em que a tia de Venâncio lhe dá a conhecer a árvore genealógica, que o jovem tanto preza. Isto mesmo se coaduna com o gosto que Vitorino Nemésio tinha sempre em frisar que era “um açoriano de treze gerações!”

Pouco a pouco, a situação de corte do cordão umbilical que, no início da obra, se nos afigurava tão dolorosa, é, afinal, facilmente ultrapassada pelo adolescente Venâncio. A cidade causa-lhe “uma forte impressão”, aparecendo-lhe “como um belo presépio enorme”, com “casas maiores” (do que as da Praia) e “grandes ruas limpas”. Ao terminar o primeiro capítulo, Venâncio já nem pensa em retornar à modesta terra materna…

A Nemésio, terá sido sido muito difícil a condensação deste período da vida em Varanda de Pilatos, a julgar pelas suas Notas Biográficas: “Do tempo do liceu, que às vezes me parece amargo, o difícil é julgar e resumir, cobrindo-me quase toda a adolescência.”

Porquê este adjectivo “amargo”? Sabemos que a tónica permanente do humor adolescente é a instabilidade. É notável que este período tão falho de equilíbrio na vida deixe, paradoxalmente, saudades a todos. Veja-se o que diz Bastos, o amigo mais velho de Venâncio, que o introduz no mundo da anarquia revolucionária: “Estás na idade melhor…”

Todavia, o adolescente, ele próprio, só tem a impressão de avançar na vida sem direcção nem certezas e só mais tarde olhará para esta primeira juventude como “a idade melhor”. Nesta fase de afirmação da personalidade e procura de novos modelos, precisa de projectar a sua necessidade de admirar alguém e a sua nostalgia de perfeição num amigo mais velho. Este amigo, comum na adolescência, é, para Venâncio, o Bastos, a quem imita e atribui qualidades dignas de herói.

O revolucionário Bastos teve como protótipo uma figura real - o amigo de Nemésio, Jaime Brasil, que ele conheceu aos catorze anos, a mesma idade com que, na obra, Venâncio conhece Bastos. Jaime Brasil teve influência no precoce início da vida literária de Nemésio no jornal Eco Académico e, mais tarde, já em Lisboa - para onde irão ambos - será o amigo quem o ajuda a vencer as dificuldades económicas que o assaltam na época em que Nemésio se dedica ao jornalismo. Este amigo mais velho guiava Nemésio na aventura de descoberta da literatura, “inoculando no adolescente ainda piedoso que eu era o vírus da indiferença e algumas estirpes anarcóides”(Vitorino Nemésio, “Um repórter na rua da Atalaia”, A Luta, 19.11.1976) e tornando-se, deste modo, seu “mentor de iniciação literária e agnóstica.” Por isso, Nemésio lhe dedicou o seu livro La Voyelle Promise, com a significativa e singela mensagem:

“A Jaime Brasil, pelo muito que lhe devo da minha formação na adolescência.”

Em Varanda de Pilatos, Bastos introduz Venâncio num círculo revolucionário do qual ele próprio faz parte. Ora, todo o adolescente deseja mudar a sociedade; porém não é um verdadeiro revolucionário, pois não tem um esquema concreto de reforma social, mas apenas fantasias messiânicas ingénuas de salvação do mundo. Por isso, Bastos, anarquista convicto, se exaspera variadas vezes com a falta de experiência do “menino de mama que veio de Vilório”(p. 95): “Estás numa idade transitiva. Há na tua pessoa, por assim dizer, uma camada de dentro que quer romper a de fora. E que tens tu nesse teu ar de Santantoninho da Grota? Tabaco no umbigo; os cueiros que fedem ainda; pronto! Pois tudo isso vai ser lançado às urtigas por um pimpão que aí está dentro. Esse pimpão é o homem[…]não passas, por ora, de um trampolim onde pulam desejos pueris e de adulto. Falta-te o eu. Em suma, falta-te o nervo.” (V.P., p. 96)

Para além de ser este o processo natural de desenvolvimento do adolescente, Bastos depara-se – para azar do seu grupo de revolucionários anárquicos laicos “Os Vingadores” – com um adolescente como Venâncio: idealista em pleno, evadindo-se frequentemente para quimeras e utopias – e daí a frequência de versos e escritos que tão bem cabe no seu temperamento artístico… e no do adolescente que foi Nemésio (lembremos que Nemésio, aos 15 anos publicou Canto Matinal).

Qual acaba por ser o verdadeiro papel de Venâncio no grupo de revoltosos? O de um indeciso, sem grande força de vontade, que recusa até um assalto à padaria por achar tratar-se de um “meio violento”. Venâncio é, pois, apesar dos seus devaneios e vontades, um adolescente de personalidade marcadamente passiva característica por excelência de todas as outras personificações nemesianas presentes noutras obras. (Veja-se João Garcia, de Mau Tempo no Canal, cujo feitio “paralítico” e indeciso o impede de ir visitar a mãe e de se aproximar definitivamente de Margarida.)

Este modus operandi, que se traduz num carácter “frouxo”, em que falta ardência, coragem, numa palavra, acção, acaba por ser a marca típica do anti-herói nemesiano. Tudo isto pode sumular-se por um relativo fracasso da afirmação do “eu”.

Quando se descobre que Bastos é o autor da revolução, Venâncio nem tão pouco é capaz de defender o amigo; amedronta-se cobardemente, não sem antes se debater na sua dialéctica de indeciso - pois, como ele próprio afirma, é a perspectiva do ter de optar irrevogavelmente que o martiriza e perturba:

“A minha noção de solidariedade e um vago horror a tomar uma atitude franca engalfinharam-se então, como dois garotos bulhentos, rua do Frango acima. Devia manifestar-me ou não publicamente[…]?Aí, na ponte pênsil, entre os dois caminhos, é que engatava o busílis. Mas a perspectiva de a trocar por um deles horrorizava-me quase. O bom, o ideal, seria continuar na irresolução, de bruços, vendo as duas paisagens…”

É esta situação de indecisão, de verdadeira paralisia de carácter, que leva Venâncio a encolher os ombros e a optar por uma solução “cobardemente intermédia”: visitar o amigo no Hospital, falar-lhe como camarada mas negar qualquer implicação revolucionária caso alguém lho pergunte. Tal opção constitui o âmago definidor das opções futuras de Venâncio, e é tanto mais importante quanto Nemésio nos chama a atenção para ela, através do título da própria obra: Varanda de Pilatos – a varanda de onde Pilatos, procurador romano, “lavou as mãos” da crucificação de Cristo (judeu que, segundo as leis romanas não tinha cometido quaisquer crimes) mas de onde também declarou não se opor ao seu castigo; simplesmente, o chicotearia e o deixaria às mãos justiceiras do seu próprio povo.

Deixando agora de lado esta perspectiva tão pouca elogiosa do carácter de Venâncio – da qual Nemésio tinha plena consciência e para a qual chamou intensamente a atenção na Dedicatória da obra, chamando-lhe “joguete que passa como uma enguia por entre todas as malhas da teia” – e voltemo-nos para o idealismo romântico: a acentuada tendência para a evasão física e espiritual (já espelhada nos poemas ingénuos de Venâncio sobre o amor) acaba por o conduzir a uma concepção distorcida da entidade feminina, podendo-se mesmo afirmar a uma mitificação da mesma. Disto mesmo é exemplo a relação de Venâncio com a sua namorada Elisa.

Venâncio sonha com uma Elisa que pouco ou nada tem a ver com a Elisa real, achando-a “muito terna e meiga”, nunca sendo capaz de a arrancar do seu “pedestal pueril”, mesmo quando ela lhe confessa abertamente as suas “infidelidades”. Ele mesmo diz ao leitor (pois que todo o romance se desenrola em primeira pessoa) sentir por Elisa “o alto sentimento que perfumava os cavaleiros, vindo de meigas donas”. (V.P., p.73). Embora saibamos que a imaginação e a idealização têm um papel de vulto a desempenhar nos amores adolescentes, o sentimento parece-nos excessivamente Romântico.

Devido a este mitificar de um ser que logo passa a assumir contornos puros e mesmo traços virginais inquebrantáveis, Venâncio tem de se dividir entre este amor casto por Elisa (que não permite, na sua noção cavalheiresca e ideal, contacto físico) e o seu erotismo nascente de homem a despontar. Venâncio opta por concentrar todo o seu erotismo em Fernanda, uma rapariga consideravelmente mais velha do que ele. Esta bipolaridade não é rara, precisamente em casos de mitificação do amor, em que a atracção sexual, não podendo ter lugar ali, concentra-se num elemento que pareça ser mais forte na perspeciva adolescente, no caso em alguém mais velho e, portanto, com maior domínio:

“Que desejo – pergunto hoje a mim mesmo - me despertava essa donzela então? Ela era uma senhora, talvez com mais de vinte anos; eu era um garoto com pouco mais de treze.” (V.P., p.43).

A personagem Fernanda Cabanas, tão desejada pelo adolescente do romance, é, mais uma vez, decalcada de uma figura que Nemésio conheceu na vida real: “uma moça de vinte anos, visita da casa [das tias]” (Vitorino Nemésio, Notas Autobiográficas), de quem ainda guardava recordações, não só abstractas como materiais, em 1971 quando escreve a David Mourão-Ferreira sobre as lembranças que estiveram na base de Varanda de Pilatos: “minha mãe foi da Praia a Angra às festas a casa da tia Inácia, [..]a Tia (esquece-me o deguisement) da Varanda de Pilatos (o romance não presta mas a recordação é boa); ainda vive em Lisboa, mais velha do que eu uns dez anos, quem copiei ou encarnei em Fernanda, e eu guardo na carteira uma carta de jogar/miniatura com naipes de flores que ela me deu”.

Atentemos na importância que teve na vida deste rapaz liceal esta musa mais velha – poucos anos antes de falecer, já idoso, Nemésio guardava ainda na carteira uma cartinha de jogar que ela lhe ofertara, provavelmente sem segundas intenções!...

Comuns na adolescência são estes amores secretos (“o adolescente ama o segredo” diz-nos Maurice Debesse) e romanceados por alguém de idade superior à sua, sendo que este amor corresponde também à procura do ideal. A introspecção, a tendência para uma atitude reflexiva como expressão da consciência individual acentua-se de modo particular neste período da vida, especialmente no adolescente intelectual, que acabará por recorrer ao seu refúgio interior sempre que se desiludir com a realidade crua. Deste modo, cria-se um distanciamento entre a vivência real e a idealizada, que nasceu do romanesco fabulado pelo mundo interior.

Estes amores que vivem apenas na mente – mas que não podemos denominar platónicos, pois que pressupõem estímulos físicos fortes – são, também, alimentados pela excitação da dificuldade, pela necessidade do adolescente se ultrapassar, pelo próprio fascínio do impossível; tudo isto enfim, condensado numa mulher que é, à vista do jovem, madura.

A admiração ilimitada por Fernanda Cabanas constitui, segundo José Martins Garcia (um dos maiores estudiosos de Vitorino Nemésio, falecido há poucos anos), um dos “pecados” de Venâncio – recordemos que os dois pecados que o jovem comete são, no entender deste estudioso e primeiro biógrafo nemesiano, “açorianidade e erotismo”.

A açorianidade do jovem está patente na sua própria mentalidade e condição, essa condição cujos traços principais se podem resumir em “solidão, cárcere, infinito e fuga” (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, à Luz do Verbo): solidão na ilha, vendo-a como prisão, mar como infinito e fuga da ilha… o mar é a ideia que leva à ansia de partida e é o mar que o leva a partir no fim do romance rumo a Lisboa. Uma partida que já se adivinhava pois que desde sempre espreitara o Garajau, que “insinuava [nele] a sugestão da distância e o amor à voz dos ventos” (V.P., p. 119). De resto, Venâncio “adora[…]os navios”, tal como Nemésio. Atentemos no seguinte poema nemesiano a esse respeito:





“Quando eu era pequeno, vinha o navio de sal,

era um acontecimento!

E meu tio António Machado ia sempre ao areal,

Com seu óculo de alcance desencanudado

E, como trazia o sal, que é o sabor das panelas,

Era esperado como se fosse um ausente.”

(Vitorio Nemésio, O Bicho Harmonioso)

Esta imagem do navio, como meio de sobrevivência da própria comunidade ilhoa, paralelamente como modo de apartamento da ilha (mas também de regresso possível), como forma de substancialização do “sonho e destino islenhos” ou seja, a fatalidade da emigração), é uma constante em vários poemas de Nemésio.

O fascínio pelos navios é a vontade encapuçada de partir, de cortar as “amarras que prendem o açoriano ao cárcere ilhéu” (Margarida Maia Gouveia, A Viagem em Vitorino Nemésio), à circularidade da insula mater, quebrada apenas pelo mar, mar que depressa leva o ilhéu a prefigurar o mundo que se encontra do outro lado.

Em Varanda de Pilatos, é Tibério, o pai de Venâncio, quem parte primeiro para a capital, deixando uma porta aberta para que o adolescente o siga. Diz-nos Venâncio sobre a fuga do pai:

“Meu pai era um forçado entre simplórios e medíocres. Nascera sob um signo que não tinha ali cumprimento ou, se o tinha, precisava de meios necessariamente insensatos” (V.P.,p.116) . Soberanamente dotado para a música e melómano declarado, mas por má fortuna nascido numa vila onde só lhe resta dirigir a tuna, Tibério vive amargurado e em constante renúncia à sua condição interior, assobiando árias, num “não- viver quietista”, do qual o filho compartilha o sentimento profundo: “Eu não vivia, meu pai não vivia: adiávamos de instante para instante a ocasião de renascer”(V.P. ,p. 126).

Esta é mais uma experiência certamente decalcada da vida de Vitorino Nemésio, pois é certo que seu pai empreendeu uma fuga para a capital quando Nemésio contava oito anos de idade. Sobre este facto (marcante dados os seus poucos anos e a admiração incondicional e afecto profundo que o ligavam à figura paterna), o autor escreveu em “Retrato do pai”: “ O desfecho dessa crise de 1909 foi uma espécie de fuga de meu pai para Lisboa. Fechou-se uma tarde comigo, lá para o fim da casa(...) e, completamente transtornado, passando facilmente do berro desabrido à lágrima e aos mimos, ensinou-me em duas horas um stabat mater quase lúgubre. Nunca mais me esqueceu! […] eu a tremer de medo e ao mesmo tempo conquistado por aquele encanto dramático das frases latinas, a música muito triste, meu pai todo transtornado cobrindo-me alternadamente de berros e de beijos. Era a sua despedida. Nem que tivesse a consciência de me sagrar para um destino que lhe escapara a ele.”(Vitorino Nemésio, “Retrato do Pai”) Parece, assim, evidente, que a partida do pai de Venâncio em Varanda de Pilatos é um artifício romanesco para ficcionalizar o que, de facto, aconteceu a Vitorino Nemésio, que deste modo transferiu um acontecimento da sua infância para a cronologia do adolescente.

O pai de Venâncio, Tibério é, assim, um alter ego do pai de Nemésio, também ele músico amador e alma liberal. A ligação de Nemésio ao pai foi talvez a relação mais profunda e marcante da sua vida; percorre toda a sua literatura - na poesia, são notáveis as referências ao pai.

O pai de Nemésio constituia “a grande saudade da sua meninice. Todas as coisas que vi e senti vão ter a ele como um rio.” (“Vitorino Nemésio, ilhéu do mundo”, in Jornal Expresso, 1/12/ 2001) Encheu, contudo, a adolescência de Nemésio de “melancolia e temor de “melancolia e temor”, provavelmente porque, tal como Nemésio confessou em “Retrato do Pai”, era alcoólico: “A raras pessoas tenho contado isto e nunca o escrevi [itálico nosso]: meu Pai era alcoólico. Essas crises de vagabundagem poética eram provocadas ou então agravadas pelo álcool. Mas meu Pai não era um alcoólico inveterado. Bastava um nada para o toldar. Então os seus nervos abalavam-se todos. Não dormia. Às duas ou três horas da manhã levantava-se e saía exaltado. Andava, andava até ao alvorecer. Ia longe. Creio que preferia os lugares escusos ou altos, onde pudesse estar mais só com seu fadário e consigo: ver nascer o sol Ponta da Mámerenda; ir amanhecer ao Cabo da Praia ou às Fontinhas.” (Vitorino Nemésio, “Retrato do pai”)

Na transposição ficcional que encontramos em Varanda de Pilatos, o alcoolismo foi notoriamente suprimido e sublimado artisticamente por uma alma musical incompreendida pela sociedade e pela família, cujo único escape é a arte. Sem dúvida, muito mais poético e atraente, e também menos doloroso para o autor, se levarmos em conta que o pai era a figura de culto de Nemésio, inspiração e ídolo, e é natural que ele não se permitisse revelar os aspectos menos positivos da sua personalidade. Ademais, o pai falecera em 1923, poucos anos antes da publicação de Varanda de Pilatos.



E é exactamente com o fim da adolescência de Venâncio e sua passagem para o início da idade adulta que Nemésio fecha a sua obra, levando Venâncio a partir para Lisboa, a terra da promissão, onde se passarão os grandes eventos das suas vidas, uma alteração de lugar – e que corresponde à autonomização do sujeito, aqui propiciamente apoiada por uma terra que lhe oferece horizontes mais largos. Foi assim de facto na vida de Nemésio, que na capital iniciou a sua vida profissional e que, a partir daqui, só voltaria à terra-mãe em férias. Isto leva-nos a considerar a questão do já chamado “eterno-retorno” em Nemésio, visto a ilha, microcosmos essencial e origem mítico- material, desempenhar para sempre um papel de suma importância na vitalidade nemesiana.

Fácil é concluir que Varanda de Pilatos é um romance claramente pessoal, com muito de autobiográfico, mascarado em hábil disfarce, nem sempre tão velado como o autor, a posteriori, desejaria. A profusão de tias representadas na obra (tia Perpétua, tia Delgada, tia Rita, tia Custódia, tia Isménia, a velhinha) valeram a Nemésio um comentário incisivo de Aquilino Ribeiro quando lhe mostrou o manuscrito da obra: “Parecem-me tias de mais…”; ao que Nemésio terá respondido que, na realidade, tivera muitas, razão por que a ficção que retratava a época liceal continha tias em abundância.



Por todas estas questões de proximidade entre o real e o fictivo, no prefácio a Varanda de Pilatos, José Martins Garcia coloca algumas hipóteses pertinentes para a classificação deste romance invulgar: estaremos, talvez, perante um “romance lírico”, dada a exposição do eu íntimo do autor e a narração de primeira pessoa; distorcendo habilmente algumas noções teóricas, podemos cair num conjunto de termos, mais ou menos entrecruzantes “um documento da realidade insular, o testemunho de uma crise, um quase-poema de saudade, uma confissão, etc”; ou,ainda, se desejarmos ser mais técnicos e enveredar pelo caminho da psicologia aplicada ao romance “uma artimanha, um déguisement, um roman à clé, uma vingança, um produto de certo complexo de ressentimento (cf.«Retrato do Pai:« Um freudiano qualquer chamaria a isto um complexo de ressentimento» - Isto...« a côdea do lodo em que a minha vida assenta».( José Martins Garcia, prefácio a Varanda de Pilatos)



Para terminar, fundamentalmente gostaria que esta minha conversa convosco fosse uma porta para terem vontade de ler Vitorino Nemésio. Claro que Nemésio tem um percurso de vida e de obras riquissimo, livros de poemas onde pulsa a açorianidade, onde está presente a questão da sua fé (“senhor aqui me tens, aflito e retirado, como quem põe à porta o saco para o pão…”), o seu conflito com o Tempo (“tempo que levas meu pai morto”) – isto para citar as questões mais importantes - , os artigos onde inventou o proprio conceito de Açorianiedade, as fabulosas crónicas de viagem, como aquelas que fez aos Açores (Corsário das Ilhas) ou ao Brasil, algo sobre o qual ouviremos falar amanhã. Aqui, debrucei-me apenas sobre os anos de ligaçao física de Nemésio aos Açores, muito presentes nesta obra ficcional.

Não me quero despedir sem antes fazer minhas as palavras de Nemésio, que escreveu numa obra chamada O Segredo de Ouro Preto (1954) – que é, como sabem, sobre a sua vivência aqui no Brasil, ele que foi professor a Bahia que lhe lembrava as suas ilhas e que também viajou por outros ligares deste país enorme - : “ em qualquer português vive facilmente a pena de não ter achado o Brasil…”. Eu penso verdadeiramente que essa emoção, 56 anos depois, é verdadeira para mim também. Achar o Brasil, e achar dentro do Brasil a minha terra nesta Casa dos Açores do Rio, é uma enorme emoção.