... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 24, 2010

Dar



“Dar” é um verbo difícil de conjugar. Ainda hoje me falaram numa criança que não consegue conjugar bem o pretérito perfeito do indicativo e diz “eu di” em vez de “eu dei”. Mas claro que não é isto a que eu me refiro quando falo na difícil conjugação desta palavra. Todos os nossos problemas fossem linguísticos quando falamos de “dar”.


Confesso que fico um pouco irritada com aquilo a que se pode chamar “caridadezinha”. No Natal, ela atinge o seu auge. Há pessoas que pagam salários absurdamente miseráveis à empregada que lhes limpa a sanita lá de casa, isto para além de a tratarem como se ela fosse um verme que se passeia numa casa de família onde todos são rosas de colecção; essas mesmas pessoas gostam imenso de fazer donativos espectaculares para causas sociais que se vejam, isto é, que sejam notícia, que ponham o seu nome em destaque no jornal da terra. Dizem-me que são pessoas generosas. Talvez a palavra “generosidade” agora tenha outro significado que não seja “dar livremente sem esperar algo em troca” e eu não tenha dado por isso… Tenho de me actualizar.


Do mesmo modo, incomodam-me as pessoas que se aproveitam das desgraças alheias (sejam elas individuais como uma orfandade, ou colectivas como um sismo) para exibirem ao mundo a sua pretensa largueza de coração. A verdadeira generosidade é recatada. Não precisa de testemunhas. Prefere até não as ter, por respeito para com quem recebe, pois quem recebe está – quantas vezes! – envergonhado por precisar de receber.


Os pretensos generosos são, afinal, narcisistas em busca de um bocadinho de estrelato, de palmas e de elogios. Querem receber qualquer coisinha. E não é pouco.


Também há quem sofra de um mal oposto. São os que dão demais. Entregam-se todos ao mundo. Este género é bem mais raro, claro. Constitui outro tipo de problema, não para o mundo, mas para os próprios, pois dando tanto – do seu tempo, das suas capacidades, das suas vidas – estes seres acabam por constatar que pouco tiraram para si. Vivem sempre em função do próximo, numa perpétua atitude de imolação. Como tal, também são infelizes.


“Dar” também pode ser um verbo perigoso. A este respeito, há uma lenda dos Andes, que o grande  H.G.Wells adaptou para conto e chamou-lhe “The Country of the Blind”. Num vale perdido e muito fundo, quase sem luz, de geração em geração acabou por se desenvolver uma tribo de homens inteiramente cega. E, na verdade, eles não necessitavam de ver. Com o passar do tempo, esqueceram que existiam não–cegos, pois os seus próprios corpos eram adaptados à cegueira, com órbitas fundas e ouvidos apurados. Certo alpinista desastrado caiu nesta terra perdida, sobrevivendo da monumental queda por milagre. Ao perceber que estava numa terra de cegos, ficou aterrado… mas também fascinado. Quantas coisas ele podia ensinar àquela gente! Como seria bom fazê-los descobrir tanta coisa que até aí lhes estava vedada! Guiá-los pela mão para as maravilhas a que só ele, alpinista, tinha acesso. Começou a falar-lhes do que via e de como sentia as coisas, imbuído de um sentimento generoso (e também, porque não confessá-lo?, da ideia de que ele era o único com olhos numa terra de cegos…). Não foi preciso muito tempo para que todos o julgassem louco e o encarcerassem. Como o alpinista continuava a falar e a tentar dar-lhes um pouco do seu mundo, decidiram que a sua loucura (pois que era certo que de loucura se tratava esta sua diferença teimosa dos restantes) era devida às protuberâncias que ele tinha nos globos oculares – coisa que eles não tinham – e resolveram que o pobre alpinista necessitava de ser curado para ficar como todos eles. Decidiram ser magnânimos e tirar-lhe os olhos. Foi então que o alpinista percebeu que “não se pode lutar alegremente com pessoas cuja base mental é diferente da nossa” e que nem sempre o velho provérbio sobre o homem com um olho ser rei é verdadeiro – pelo menos, não o é perante uma multidão de gente que nunca viu e se recusa a ver. O alpinista suicidou-se, vendo a bela paisagem.


“Dar” é complicado. Mas continua a ser a única forma de viver para alguém e de viver connosco. Tem é um equilíbrio muito frágil, todos os dias do Ano, quer seja ou não Natal.