“Começamos a ser estrangeiros onde nascemos, ou como?!
Agora é o coração que se constrange. Vivi aqui e ali. Uma, duas, três casas
que abrigaram o adolescente e parecem olhar o homem maduro com olhos cegos,
janelas ocas… Tudo isto do sonho e da saudade é uma mentira arranjada, um
embuste literário ou quê? Então não é verdade que aquela vidraça era minha?
[…]Porque não nos conhecem e festejam as janelas e […] as pedras das calçadas?
Mas passamos ao largo de tudo e tudo fica incólume.”
Vitorino Nemésio, Corsário das Ilhas
Há um conjunto de sentimentos estranhos e invulgares que assalta o imigrante. Quer tenha imigrado por necessidade conjuntural quer o tenha feito por fascínio aventureiro, sente-se, ao chegar ao novo país, relutante ao entranhar de uma cultura que não é a sua. Relutante em pequenos nadas na habituação a um diferente quotidiano, no qual se entrelaçam um modo de pensar necessariamente diverso e um clima quantas vezes oposto ao que deixou. Uma adaptação sensorial completa de um ser humano adulto, cujos sentidos renascem: as papilas gustativas, o estômago e os intestinos confrontados com uma comida totalmente nova, o nariz e a cabeça à luta com uma panóplia de aromas nunca dantes sentidos, os olhos perdidos na anonimidade de rostos que enfrenta, os ouvidos aflitos na preocupação de entender e de se fazer entender noutra língua, o tacto confuso com outra forma de interpretar os seus gestos antes comuns, outra maneira de ser bem-educado (ou não), outra geografia de ruas, parques, mar substituído por montanha, montanha que deu o lugar a cidade. Um abismo cultural que, pouco a pouco, se vai aceitando.
E, a certo passo, é quase com surpresa que descobre que a nova cultura já é a sua. Em pequeninos gestos automáticos, na forma de cumprimentar, na sua lista de compras, no olhar e entender do mundo que antes era novo, e agora se tornou diário… e seu.
Surge, então, para alguns uma ansiedade indefinida e contraditória de regresso às origens, vulgo saudade, misturada com desgosto por partir. Talvez seja uma espécie de relógio de medo incutido pelos nossos progenitores que nos alerta para não perdermos raízes. Talvez uma reacção natural de segurança, que está na pirâmide básica das necessidades dos seres humanos.
Todos regressam, de visita. Mas alguns regressam… e ficam.
Não sou diferentes de milhares, de milhões de pessoas. Tal como o meu vizinho do lado, também eu já fui imigrante. E também eu voltei ao que se chama terra natal. E, como tantos outros, também eu olho em volta, “vivi aqui e ali” mas nada já me conhece ou festeja, tudo deixou de ser meu. Inexplicada e dolorosamente, também eu não me sinto em casa.
Não há casa geográfica possível para os espíritos nómadas. Mas isso, ao contrário do que muitas vezes se apregoa, não é forçosamente triste. Embora desde os mitos gregos se venha pensando que os viajantes não têm mais lugar nem reconhecimento no lar que um dia deixaram, também é certo que nada desperta tanto um ser humano como a viagem em si.
A amargura que, inicialmente, se sente no re-confronto com a terra de origem transforma-se, para muitos, numa espécie de serena alegria, que se alcança sem saber muito bem como (nova transformação camaleónica!), pela gratidão do presente de uma vida cheia, pela consciência dos rumos que a qualquer momento se podem alterar, por uma tão maior segurança individual depois do que se passou e ultrapassou, pela agradável assumpção da diferença, pela paixão de ser em todas as suas vertentes.
Kaváfis, poeta grego, exprimiu bem o que podemos e devemos esperar ao regressar a “casa”, usando como imagem Ítaca, a ilha do célebre herói Ulisses, cuja viagem longa o tornou também um perfeito desconhecido, mesmo por parte da sua família, aquando do regresso:
“Ítaca já te deu uma bela viagem; sem Ítaca, jamais terias partido.
Ela já te deu tudo, e nada mais te pode dar.
Se, no final, achares que Ítaca é pobre, não penses que ela te enganou.
Porque te tornaste um sábio, viveste uma vida intensa,
e este é o significado de Ítaca.
E agora sabes o que significam Ítacas.”
N.B.: Por decisão editorial do jornal, este artigo foi publicado sem o seu título original (http://www.mundoacoriano.com/index.php?mode=noticias&action=show&id=153)
que era o que aqui se coloca.