... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, August 26, 2011

Viagens Longe da Porta


“Começamos a ser estrangeiros onde nascemos, ou como?!
Agora é o coração que se constrange.  Vivi aqui e ali. Uma, duas, três casas
que abrigaram o adolescente e parecem olhar o homem maduro com olhos cegos,
janelas ocas… Tudo isto do sonho e da saudade é uma mentira arranjada, um
embuste literário ou quê? Então não é verdade que aquela vidraça era minha?
[…]Porque não nos conhecem e festejam as janelas e […] as pedras das calçadas?
Mas passamos ao largo de tudo e tudo fica incólume.”
Vitorino Nemésio, Corsário das Ilhas

Há um conjunto de sentimentos estranhos e invulgares que assalta o imigrante. Quer tenha imigrado por necessidade conjuntural quer o tenha feito por fascínio aventureiro, sente-se, ao chegar ao novo país, relutante ao entranhar de uma cultura que não é a sua. Relutante em pequenos nadas na habituação a um diferente quotidiano, no qual se entrelaçam um modo de pensar necessariamente diverso e um clima quantas vezes oposto ao que deixou. Uma adaptação sensorial completa de um ser humano adulto, cujos sentidos renascem: as papilas gustativas, o estômago e os intestinos confrontados com uma comida totalmente nova, o nariz e a cabeça à luta com uma panóplia de aromas nunca dantes sentidos, os olhos perdidos na anonimidade de rostos que enfrenta, os ouvidos aflitos na preocupação de entender e de se fazer entender noutra língua, o tacto confuso com outra forma de interpretar os seus gestos antes comuns, outra maneira de ser bem-educado (ou não), outra geografia de ruas, parques, mar substituído por montanha, montanha que deu o lugar a cidade. Um abismo cultural que, pouco a pouco, se vai aceitando.


E, a certo passo, é quase com surpresa que descobre que a nova cultura já é a sua. Em pequeninos gestos automáticos, na forma de cumprimentar, na sua lista de compras, no olhar e entender do mundo que antes era novo, e agora se tornou diário… e seu.  

Surge, então, para alguns uma ansiedade indefinida e contraditória de regresso às origens, vulgo saudade, misturada com desgosto por partir. Talvez seja uma espécie de relógio de medo incutido pelos nossos progenitores que nos alerta para não perdermos raízes.  Talvez uma reacção natural de segurança, que está na pirâmide básica das necessidades dos seres humanos.
Todos regressam, de visita. Mas alguns regressam… e ficam. 


Não sou diferentes de milhares, de milhões de pessoas. Tal como o meu vizinho do lado, também eu já fui imigrante. E também eu voltei ao que se chama terra natal. E, como tantos outros, também eu olho em volta, “vivi aqui e ali” mas nada já me conhece ou festeja, tudo deixou de ser meu. Inexplicada e dolorosamente, também eu não me sinto em casa.


Não há casa geográfica possível para os espíritos nómadas. Mas isso, ao contrário do que muitas vezes se apregoa, não é forçosamente triste. Embora desde os mitos gregos se venha pensando que os viajantes não têm mais lugar nem reconhecimento no lar que um dia deixaram, também é certo que nada desperta tanto um ser humano como a viagem em si.


A amargura que, inicialmente, se sente no re-confronto com a terra de origem transforma-se, para muitos, numa espécie de serena alegria, que se alcança sem saber muito bem como (nova transformação camaleónica!), pela gratidão do presente de uma vida cheia, pela consciência dos rumos que a qualquer momento se podem alterar, por uma tão maior segurança individual depois do que se passou e ultrapassou, pela agradável assumpção da diferença, pela paixão de ser em todas as suas vertentes.


Kaváfis, poeta grego, exprimiu bem o que podemos e devemos esperar ao regressar a “casa”, usando como imagem Ítaca, a ilha do célebre herói Ulisses, cuja viagem longa o tornou também um perfeito desconhecido, mesmo por parte da sua família, aquando do regresso:


“Ítaca já te deu uma bela viagem; sem Ítaca, jamais terias partido.

Ela já te deu tudo, e nada mais te pode dar.

Se, no final, achares que Ítaca é pobre, não penses que ela te enganou.

Porque te tornaste um sábio, viveste uma vida intensa,

e este é o significado de Ítaca.

E agora sabes o que significam Ítacas.”




N.B.: Por decisão editorial do jornal, este artigo foi publicado sem o seu título original (
http://www.mundoacoriano.com/index.php?mode=noticias&action=show&id=153
que era o que aqui se coloca. 


Saturday, August 20, 2011

Misérias


Dizem que a miséria não existe por aqui. Vivemos num local abençoado onde, felizmente, ela ainda não chegou. Quase toda a gente tem emprego e ouço mesmo dizer que quem não tem é porque não tentou o suficiente, não se esforçou o bastante, ou é, por personalidade e vocação, um parasita social. A mim, que não acredito nessa nossa retórica de auto-promoção social toponímica que tenta passar a imagem de uns Açores sem fome, também me explicaram textualmente que "há pessoas que gostam de viver assim." Na miséria. Quando perguntei como era isso possível, respnderam-me: "Estão habituadas. Nem conhecem outra vida. Isso, para eles, é confortável..."

Parece-me que esse mito urbano é que se tornou extremamente confortável para quem não vive em condições miseráveis.

Há ainda outros mitos que avolumam o primeiro. Por exemplo, a ideia de que quem pede esmola está automaticamente a pedir para satisfazer um vício (seja este ilegal, como algumas drogas, ou legal, como o álcool). Claro que há muitos tipos de miséria, incluindo as dependências, e, logo, muitas razões para pedir... Dentro dos vários tipos de miséria, existe inclusivé a miséria de carácter daquela personagem que sai do supermercado com três caixas de bombons de whisky mas não dá nem 50 cêntimos ao miúdo que está à porta. "Para que queres isso tudo?" "Para comprar um chocolate. O senhor pode ficar a ver eu comprar se não acredita." "Chocolate?! Se fosse para pão, eu dava! Não sabes que essas porcarias fazem mal?"

Há, de facto, tantos tipos de misérias. A miséria que advém da roda da sorte e do azar, de puros acidentes que fazem nascer uns numa casa abastada e outros numa casa onde moram 6 pessoas no mesmo quarto e, logo, obrigam os últimos a crescer muito mais depressa à força de ver no quotidiano tudo o que os primeiros só vêem nos filmes para dultos às escondidas dos pais; o que faz nascer uns na Terra das Oportunidades e outros na Terra do Sempre Igual, e saberem que, nessa terra, uma vez miserável para sempre miserável da mesma forma que aquele que nasce com sobrenome sonante só precisa de tilintar o B. I. para continuar a collecionar jantares de graça pela vida fora.  

São tantas as misérias que não cabem num livro. Mas hoje escrevo isto porque vi um antigo colega de escola a pedir, muito envergonhadamente e, claro, sem estender a mão, dinheiro para comprar uma sandes. Não tem vícios. O que não tem é emprego e as famílias, como sabemos, nem sempre são ninhos de amor. Chegou ao ponto de não ter dinheiro para comprar um miserável pão.

Podia ser eu, podias ser tu que tantas vezes ao dia passamos ao lado quando confrontados com o miúdo de rua, com a velhota perto da igreja, com o sem abrigo no centro da cidade, quase contentes porque ainda não somos nós. Estamos a salvo. Estamos acima. Usamos óculos-de-não-ver. A nosso modo, também sofremos de miséria, mas de uma miséria diferente. E temos com que sobreviver.

É muito urgente deixarmos de padecer desta cegueira voluntária que conduz à miséria interior - ela cresce devagarinho e só aumenta o sofrimento do próximo. Chama-se indiferença.

Friday, August 5, 2011

Essencialistas

Conhecem um vídeo que circula na Internet com o brilhante violinista Joshua Bell a tocar no metro de Washington, incógnito? Com a experiência, tentava-se perceber se as pessoas tinham tanto prazer com a interpretação de Bell se não soubessem que é um dos mais famosos violonistas de hoje, mas o vissem como um mero músico de rua. Numa hora, Bell não fez mais dinheiro do que os restantes músicos do metro, se exceptuarmos a gorda nota que recebeu de uma senhora que o reconheceu, ficando chocada e pesarosa por ver Joshua Bell ali.

Já foram feitas outras experiências engraçadas dentro do mesmo género. Por exemplo, as pessoas pagam um preço muito mais elevado por uma simples camisola se souberem que pertence a George Clooney. Curiosamente, o preço desce como uma flecha quando lhes dizem que a camisola pertence a Clooney, mas foi lavada antes de ser posta à venda…

Embora possamos rir destes estudos, todos os seres humanos são afectados pelo historial das coisas e das pessoas e, mais profundamente, por aquilo que imaginam que elas são.

Anda a ser muito discutida uma teoria de Paul Bloom, professor em Yale, que defende que a espécie humana é essencialista. Quer isto dizer que o Homem tem prazer e dor não apenas pela sensação neurofisiológica que o prazer ou dor em si provocam, mas sente-os muito mais intensamente e em maiores proporções devido à essência que lhes atribui, isto é ao que pensa sobre a sua origem e conteúdo. A composição química das experiências que provocam prazer ou dor é, portanto, apenas uma parcela mínima da questão.

É fácil entender esta teoria quando falamos de sensações obtidas através de algo fluído como a arte ou as ideias. Muitos de nós sentem satisfação por estar num museu a contemplar obras de Da Vinci e sentir-nos-íamos sincera e intimamente lesados se nos dissessem que os quadros são imitações, embora perfeitas. O prazer diminui a olhos vistos. Também é interessante verificar que, exibindo a mesmíssima ideia a Republicanos e Democratas, obtemos uma reacção de concórdia ou de repulsa frente ao assunto, dizendo-lhes que se trata de uma ideia do seu partido ou do partido oposto. Isto significa que é o conceito que fazemos das coisas e não as coisas per si a principal fonte de gozo ou decisão.

O mesmo fenómeno verifica-se com igual intensidade nos prazeres mais íntimos. Por exemplo, a comida. Todos já fizemos experiências com os nossos filhos que não comem sopa, mas comem a mesma sopa se forem levados a acreditar que ela tem batatas fritas esmagadas. Os adultos são iguais. Quando bebem vinho barato, o prazer é mínimo. Mas se beberem o mesmo vinho, vindo de uma garrafa caríssima e muito conhecida, as zonas do cérebro relacionadas com o prazer entram em perfeita euforia, como já foi demonstrado por experiências neuropsicológicas. Ah, quanto do prazer é feito por nós mesmos!

Como imaginam, o mesmo se aplica às relações amorosas e sexuais. O prazer nasce e cresce, em grande escala, da imaginação de quem o sente. E decresce da mesma forma. A atracção que sentimos por alguém é proporcional àquilo que mentalmente construímos dele. Além disso, existe o chamado “efeito de exposição”, i.e. quanto mais frequentemente vemos alguém mais tendência temos a desenvolver uma maior atracção… até ao pico dessa sensação, a partir da qual desenvolvemos o tédio por desilusão ou aborrecimento. Há dezenas de exemplos: tendemos a pensar que os famosos são mais bonitos e achamo-los, de imediato, boas pessoas; os casais apaixonados pensam que os seus companheiros feios são muito atraentes; as pessoas que trabalham juntas apaixonam-se frequentemente por proximidade (ou seja, acabamos logicamente por desejar o que vemos a toda a hora).

A mesma teoria da essência é válida para a dor. Se nos derem um choque eléctrico, isso dói. Mas se acreditarmos que o choque nos foi dado intencionalmente, o efeito físico da nossa dor é muitíssimo amplificado. Experiências neurológicas já o comprovaram, demonstrando que o Homem é fisicamente sensível ao que pensa ser a origem do mal.

Bloom acredita que o facto do ser humano construir em grande parte o seu próprio prazer e dor, ainda que inconscientemente e negando-o com força (pois ninguém quer admitir que aquilo que o faz sentir tão bem é uma construção mental interna), é uma vantagem para a nossa espécie. Apesar de nos sentirmos mais miseráveis do que os chimpanzés, somos também capazes de maior felicidade. Até certo ponto, somos capazes de controlar o prazer e a dor, se tivermos consciência da nossa quota-parte no processo sensitivo. Isto para não falar de um mundo de possibilidades no transformar de sensações químicas desagradáveis em experiências positivas - afinal, os humanos são os únicos loucos que pensam que comer pimenta e andar de montanha-russa são coisas boas…