... "And now for something completely different" Monty Python

Saturday, August 20, 2011

Misérias


Dizem que a miséria não existe por aqui. Vivemos num local abençoado onde, felizmente, ela ainda não chegou. Quase toda a gente tem emprego e ouço mesmo dizer que quem não tem é porque não tentou o suficiente, não se esforçou o bastante, ou é, por personalidade e vocação, um parasita social. A mim, que não acredito nessa nossa retórica de auto-promoção social toponímica que tenta passar a imagem de uns Açores sem fome, também me explicaram textualmente que "há pessoas que gostam de viver assim." Na miséria. Quando perguntei como era isso possível, respnderam-me: "Estão habituadas. Nem conhecem outra vida. Isso, para eles, é confortável..."

Parece-me que esse mito urbano é que se tornou extremamente confortável para quem não vive em condições miseráveis.

Há ainda outros mitos que avolumam o primeiro. Por exemplo, a ideia de que quem pede esmola está automaticamente a pedir para satisfazer um vício (seja este ilegal, como algumas drogas, ou legal, como o álcool). Claro que há muitos tipos de miséria, incluindo as dependências, e, logo, muitas razões para pedir... Dentro dos vários tipos de miséria, existe inclusivé a miséria de carácter daquela personagem que sai do supermercado com três caixas de bombons de whisky mas não dá nem 50 cêntimos ao miúdo que está à porta. "Para que queres isso tudo?" "Para comprar um chocolate. O senhor pode ficar a ver eu comprar se não acredita." "Chocolate?! Se fosse para pão, eu dava! Não sabes que essas porcarias fazem mal?"

Há, de facto, tantos tipos de misérias. A miséria que advém da roda da sorte e do azar, de puros acidentes que fazem nascer uns numa casa abastada e outros numa casa onde moram 6 pessoas no mesmo quarto e, logo, obrigam os últimos a crescer muito mais depressa à força de ver no quotidiano tudo o que os primeiros só vêem nos filmes para dultos às escondidas dos pais; o que faz nascer uns na Terra das Oportunidades e outros na Terra do Sempre Igual, e saberem que, nessa terra, uma vez miserável para sempre miserável da mesma forma que aquele que nasce com sobrenome sonante só precisa de tilintar o B. I. para continuar a collecionar jantares de graça pela vida fora.  

São tantas as misérias que não cabem num livro. Mas hoje escrevo isto porque vi um antigo colega de escola a pedir, muito envergonhadamente e, claro, sem estender a mão, dinheiro para comprar uma sandes. Não tem vícios. O que não tem é emprego e as famílias, como sabemos, nem sempre são ninhos de amor. Chegou ao ponto de não ter dinheiro para comprar um miserável pão.

Podia ser eu, podias ser tu que tantas vezes ao dia passamos ao lado quando confrontados com o miúdo de rua, com a velhota perto da igreja, com o sem abrigo no centro da cidade, quase contentes porque ainda não somos nós. Estamos a salvo. Estamos acima. Usamos óculos-de-não-ver. A nosso modo, também sofremos de miséria, mas de uma miséria diferente. E temos com que sobreviver.

É muito urgente deixarmos de padecer desta cegueira voluntária que conduz à miséria interior - ela cresce devagarinho e só aumenta o sofrimento do próximo. Chama-se indiferença.