... "And now for something completely different" Monty Python

Sunday, December 25, 2011

Traição de Harold Pinter



Peça de teatro de 1978, Traição entrou para a história da exigente e completa dramaturgia inglesa como um dos trabalhos mais profundos e bem conseguidos sobre a complexidade das emoções humanas. Os actores têm um trabalho árduo em palco pois, em vez de envelhecer ao longo da peça, rejuvenescem em corpo e alma – a história é contada em analepse, encontrando-se os amantes (Emma e Jerry) dois anos depois de terem terminado uma relação extra-marital que durou sete anos. 

Emma é casada com Robert e Jerry (casado com Judith) é amigo íntimo do seu marido. Resumida assim, a história parece banal, um mexerico de aldeia de quem não tem o que fazer. Mas a mestria de Pinter está em colocar os personagens perante uma traição constante e contínua, de todos entre todos e, em última análise, de traição a si próprios, de tal modo que não sabemos a que traição o título se refere. 

Traem-se os esposos, traem-se os amigos, traem-se os amantes: a certa altura, Emma conta ao marido que está com Jerry mas não conta a Jerry que o marido sabe… e a amizade dos dois homens permanece, durante anos, em desequilíbrio de forças mas não pela razão original. Traem-se ainda os amores pois é muito claro que a perspectiva homem/mulher sobre a relação amorosa e suas expectativas é completamente diversa, bem como o remorso e as memórias que ambos guardam seja do adultério seja do casamento. Emma precisa dos dois homens, os dois homens precisam dela e precisam um do outro. É talvez por se darem conta desta ácida fatalidade que passam de jovens amorosos e alegres a cépticos magoados (ou antes o contrário na estranha cronologia da peça).


Harold Pinter nunca escondeu que Traição se baseava na sua própria experiência de vida - durante sete anos, manteve uma sólida relação com outra pessoa que não a sua amarga primeira mulher. Mais tarde, já noutra relação, Pinter diria: “Hoje, tenho uma vida feliz. Mas não se faz teatro sobre vidas felizes. O teatro é sobre conflito e perturbação. Vivo a felicidade, não a revelo.”


Pinter ganhou o Nobel da Literatura em 2005 “pelas suas dramaturgias que descobrem o precipício debaixo da conversa quotidiana e deixam a força entrar nos quartos fechados da opressão.” 

Friday, December 23, 2011

Regis olim urbe David



Não gosto de escrever sobre o Natal. Sabe-me a hipocrisia, coisa na qual sou francamente má, porque gosto da transparência nas relações. Não sendo eu cristã, do ponto de vista religioso e muito menos eclesiástico, não posso discursar sobre a celebração do nascimento de um Salvador, a não ser teoricamente. Fui uma vez na vida à Missa do Galo, já adulta, para acompanhar um namorado e a família deste. Achei lindíssimo o presépio vivo, o cordeirinho dentro da Igreja, a luminosidade, os cânticos, o cheiro do incenso (não havia mirra embora, infelizmente e mau grado os votos, existisse ouro com fartura no altar).

A espiritualidade, quanto a mim, não é uma coisa sobre a qual se teorize nem tão pouco sobre a qual se deva falar muito. Pertence ao foro íntimo das pessoas. Aquilo em que se acredita, e aquilo pelo qual se luta pertencem tanto à intimidade de cada um como as sensações que cada qual tem. É por isso que não compreendo muito bem o escaparate de montra que se faz da fé das pessoas, em multidões de procissão, em adorações conjuntas, em confessionários de um ser humano para outro; em publicidade, enfim.

Parece-me que a fé é algo que se guarda no nosso interior, e do qual só se fala com Aquele que partilha desse íntimo (se é que ela existe e se é que é partilhada). A fé, mutatis mutandis e sem qualquer intenção de chocar quem me lê, tem essa qualidade de reserva com a qual só me ocorre que se possa também adjectivar o erotismo. Não são coisas que se possam banalizar, e trazê-las à praça pública é torná-las fúteis, sem significado íntimo.

Do mesmo modo, penso sempre que quem faz proselitismo da sua crença não pode saber o que é ter fé. Parece-me esse acto tão obsceno como forçar alguém a ser meu amigo. Simplesmente, não acontece à força. Posso mandar dezenas de e-mails e mensagens por dia, convidar para café, fazer sorrisos doces… A amizade não nasce da insistência, da perseguição do “olha para mim” (eu diria até que antes pelo contrário). 

Com a fé, passa-se algo semelhante. É por isso que não percebo qual a lógica de ter pessoas pela rua a distribuir Bíblias. Só um desesperado da vida se converterá a uma fé imposta. E quem, em seu perfeito juízo e coração em bom estado, desejaria saber que conquistou um ser pelo simples facto de ele estar consumido de angústia? 

Não gosto, portanto, de escrever sobre o Natal, sobre as crenças, sobre a fé. Talvez daqui a uns anos, quando for mais crescida. Por enquanto, nesta fase da vida, parece-me que a mensagem do Natal é seguir a nossa estrela – parecendo que não, ela até indica bem o caminho.

Friday, December 9, 2011

As pessoas solidárias



Fiquei sinceramente triste esta semana quando vi anunciada uma festa solidária de uma escola açoriana promovida pelo corpo docente e encarregados de educação. Era uma coisa em grande, segundo me explicaram: jantarada com acepipes, actuações voluntárias de grupos que iam presentear a sua música e dança, venda de doces e outros artigos que permitissem angariar donativos. No fim desta festa, com a presença da comunidade escolar e suas abnegadas famílias, a cereja no topo do bolo: entregam-se cabazes de Natal a determinados alunos, previamente identificados como sendo os mais carenciados da escola. Foi este final, que tanto entusiasmava os organizadores do espectáculo, que me entristeceu para lá do que posso exprimir.

Será que ninguém, de entre aqueles pedagogos e pais, imagina o quanto é difícil para uma criança ou adolescente ser apontado a dedo perante os professores, os colegas (quantas vezes cruéis e sem a diplomacia de relações sociais que chega bem mais tarde na vida), as famílias dos colegas, ser chamado à frente da comunidade escolar inteira para publicamente envergar o título de “mais carenciado” e aceitar um donativo de todos esses que o olham no momento? A quem é que esta humilhação pública aproveita: ao que, envergonhadamente, recebe ou aos que, arrogantemente, dão?

Não é exagero o adjectivo “arrogante”. Tenho visto nas redes sociais as fotos das mamãs que confeccionaram doces com os seus pimpolhos, assumidamente “doces para os colegas pobrezinhos”. Não se lembraram, talvez, de que os “pobrezinhos” assim chamados serão da mesma forma nomeados por parte dos seus filhos em plena sala de aula – local onde a igualdade devia imperar em questões de tratamento e oportunidade.

Não pude deixar de relembrar certo episódio que presenciei numa escola onde estive. Nesse tempo, andava uma professora a vender rifas para obter um par de sapatos para um aluno que ela apontara em plena aula como tendo os sapatos rotos e precisando muito da nossa ajuda. Claro que o rapaz ficou envergonhadíssimo. Vendo a necessidade dele bem como a sua atrapalhação, outra professora fez o que sempre faz quem realmente quer ajudar: deu-lhe uns sapatos, em privado, e recomendou-lhe que não dissesse a ninguém que fora ela; simplesmente os assumisse como prenda dos seus pais. Ora, a primeira docente não descansou enquanto não arrancou do rapaz em lágrimas onde tinha ele arranjado sapatos novos “para mais sabendo do esforço que estou fazendo para te arranjar uns!” A segunda professora, pouco satisfeita assim que soube, disse à primeira: “Quantos pares de sapatos têm os teus filhos?” ao que ela respondeu “Ah, muitos, graças a Deus!” “Pois então”, respondeu a segunda, “ qual é o problema deste pequeno ter estes sapatos e mais os que lhe hás-de arranjar?”

Voltando à festa solidária, ridículo e vexatório ainda é o facto de estar publicitado que estas senhoras organizadoras da festa vão “voluntariamente fazer a distribuição do excedente dos buffets de Natal das festas da cidade pelas famílias carenciadas”. Reparem no bonito gesto cristão destas damas que publicamente assumem que vão dar as sobras dos jantares importantes às famílias mais pobres! Quão gratas devem ficar estas famílias de segunda! Afinal, em vez de pedir para “embrulhar para levar para o cão”, estas senhoras terão a caridade de se lembrar deles no fim do jantar. É muita solidariedade, de facto.

Para quem gosta de ler a banda desenhada Mafalda, do Quino, há lá uma tira que se aplica perfeitamente. Mafalda, com os seus ideais de igualdade social, está a conversar com a sua amiga Susaninha, rapariga mais dada à vida jet-set, e fica encantada quando, finalmente, ouve Susaninha dizer “Quando for adulta e rica, darei jantares chiquíssimos com lagosta, caviar, champagne… Tudo para ajudar os pobres!” Mafalda pergunta: “E vais convidar os pobres todos da cidade?” Susaninha não tem dúvidas: “Claro que não! Com o dinheiro desses jantares, comprarei sopa, couves, repolhos e essas porcarias todas que os pobres comem para lhes dar!”