... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 9, 2011

As pessoas solidárias



Fiquei sinceramente triste esta semana quando vi anunciada uma festa solidária de uma escola açoriana promovida pelo corpo docente e encarregados de educação. Era uma coisa em grande, segundo me explicaram: jantarada com acepipes, actuações voluntárias de grupos que iam presentear a sua música e dança, venda de doces e outros artigos que permitissem angariar donativos. No fim desta festa, com a presença da comunidade escolar e suas abnegadas famílias, a cereja no topo do bolo: entregam-se cabazes de Natal a determinados alunos, previamente identificados como sendo os mais carenciados da escola. Foi este final, que tanto entusiasmava os organizadores do espectáculo, que me entristeceu para lá do que posso exprimir.

Será que ninguém, de entre aqueles pedagogos e pais, imagina o quanto é difícil para uma criança ou adolescente ser apontado a dedo perante os professores, os colegas (quantas vezes cruéis e sem a diplomacia de relações sociais que chega bem mais tarde na vida), as famílias dos colegas, ser chamado à frente da comunidade escolar inteira para publicamente envergar o título de “mais carenciado” e aceitar um donativo de todos esses que o olham no momento? A quem é que esta humilhação pública aproveita: ao que, envergonhadamente, recebe ou aos que, arrogantemente, dão?

Não é exagero o adjectivo “arrogante”. Tenho visto nas redes sociais as fotos das mamãs que confeccionaram doces com os seus pimpolhos, assumidamente “doces para os colegas pobrezinhos”. Não se lembraram, talvez, de que os “pobrezinhos” assim chamados serão da mesma forma nomeados por parte dos seus filhos em plena sala de aula – local onde a igualdade devia imperar em questões de tratamento e oportunidade.

Não pude deixar de relembrar certo episódio que presenciei numa escola onde estive. Nesse tempo, andava uma professora a vender rifas para obter um par de sapatos para um aluno que ela apontara em plena aula como tendo os sapatos rotos e precisando muito da nossa ajuda. Claro que o rapaz ficou envergonhadíssimo. Vendo a necessidade dele bem como a sua atrapalhação, outra professora fez o que sempre faz quem realmente quer ajudar: deu-lhe uns sapatos, em privado, e recomendou-lhe que não dissesse a ninguém que fora ela; simplesmente os assumisse como prenda dos seus pais. Ora, a primeira docente não descansou enquanto não arrancou do rapaz em lágrimas onde tinha ele arranjado sapatos novos “para mais sabendo do esforço que estou fazendo para te arranjar uns!” A segunda professora, pouco satisfeita assim que soube, disse à primeira: “Quantos pares de sapatos têm os teus filhos?” ao que ela respondeu “Ah, muitos, graças a Deus!” “Pois então”, respondeu a segunda, “ qual é o problema deste pequeno ter estes sapatos e mais os que lhe hás-de arranjar?”

Voltando à festa solidária, ridículo e vexatório ainda é o facto de estar publicitado que estas senhoras organizadoras da festa vão “voluntariamente fazer a distribuição do excedente dos buffets de Natal das festas da cidade pelas famílias carenciadas”. Reparem no bonito gesto cristão destas damas que publicamente assumem que vão dar as sobras dos jantares importantes às famílias mais pobres! Quão gratas devem ficar estas famílias de segunda! Afinal, em vez de pedir para “embrulhar para levar para o cão”, estas senhoras terão a caridade de se lembrar deles no fim do jantar. É muita solidariedade, de facto.

Para quem gosta de ler a banda desenhada Mafalda, do Quino, há lá uma tira que se aplica perfeitamente. Mafalda, com os seus ideais de igualdade social, está a conversar com a sua amiga Susaninha, rapariga mais dada à vida jet-set, e fica encantada quando, finalmente, ouve Susaninha dizer “Quando for adulta e rica, darei jantares chiquíssimos com lagosta, caviar, champagne… Tudo para ajudar os pobres!” Mafalda pergunta: “E vais convidar os pobres todos da cidade?” Susaninha não tem dúvidas: “Claro que não! Com o dinheiro desses jantares, comprarei sopa, couves, repolhos e essas porcarias todas que os pobres comem para lhes dar!”