... "And now for something completely different" Monty Python

Wednesday, December 19, 2012

"Açores" segundo uma menina que já não existe


Há 30 anos, eu era pequena e os Açores eram completamente diferentes do que são hoje.

De quando era criança, recordo uns Açores muito rurais, onde às vezes passavam cavalos a par dos carros, pois na época esse era o meio de transporte dos lavradores que vinham à cidade tratar de afazeres.

Para todo o lado que fossemos, encontrávamos vacas. Era impossível ir dar um passeio “ao campo” (pomposo nome com se designavam as freguesias) sem ter de parar o carro por causa das vacas no meio da estrada; passava-se ali tanto tempo como num engarrafamento.

As bolachas e rosquilhas feitas em casa eram prática semanal para muitas famílias; outras coziam massa sovada e bolo ou pão de milho e outros torciam alfenim (tudo dependia da ilha onde se tinha nascido). Esses acepipes hoje servidos aos turistas como delícias tradicionais eram coisas corriqueiras.  

O padeiro andava de porta em porta; o leiteiro também. Vinham de manhã, numas motas com caixa larga atrás, e foi assim que aprendi a fazer as primeiras contas. Era uma poluição sonora sem par, o leite era “leite do dia” em saquinhos e o pão só tinha duas variedades – não se conheciam todos estes pães com passas, cereais, sementes e ninguém se preocupava em comer pão integral.

Nas festas com arraiais, era normal comer bombons de açúcar, daqueles que se vendem na rua. Hoje, as mães dizem “credo, que nojo, isso é só porcaria!” e fazem a conta à glicémia.

Havia loicinhas de barro para as crianças, a dita loiça da Vila. Hoje, os artesãos da loiça da Vila desapareceram porque se dermos loicinha de barro às crianças somos acusados de termos fornecido brinquedos não homologados pelas normas da União Europeia. De facto, de acordo com as normas de hoje em dia, ser criança há 30 anos era tão perigoso que é um milagre termos escapado razoavelmente inteiros.

A educação era, sem dúvida, diferente. Pessoalmente, como fui criada pelos meus avós e tive a invulgar sorte de ter a mesma professora e a mesma turma nos 4 anos da Primária, tenho uma lembrança muito viva, alimentada pelas conversas que ainda hoje mantenho com estes colegas quando nos juntamos. Contrariamente aos dias correntes, podíamos não passar de classe se não soubéssemos o suficiente, a professora tinha o direito de nos bater nas mãos com régua e de nos castigar. A escola era uma instituição: trocavam-se roupas, brinquedos e alguns fugiam de famílias onde viviam vidas de fazer corar argumentistas dramáticos.

Na escola, tínhamos de cantar canções religiosas e rezar à imagem da Virgem Maria. Os que não eram católicos estavam dispensados de rezar; mas a influência das outras crianças era tão grande que todos acabávamos por rezar na mesma. Foi um truque que deu resultado pois hoje sei mais sobre o Catolicismo do que muitos católicos.

Na escola primária, decorávamos rios e distritos do nosso país, sendo que nas nossas ilhas não havia rios nem distritos, nem tão pouco zonas de “gado ovino e cavalar” (Baixo Alentejo e Santarém… ainda recordo ter falhado esta pergunta na terceira classe).

Ainda não havia whale-watching. Matar baleias não era crime e ninguém achava que o mar era um parque de diversões. A tourada ainda não era um problema, era só tradição. Ninguém precisava de guia para subir o Pico. Ninguém reciclava o lixo e as fraldas não eram descartáveis.

Os romeiros não suscitavam reportagens de TV; apenas respeito. Relembro um intercâmbio que a Primária do Nordeste de S. Miguel fez connosco e foi como se estivéssemos recebendo uma delegação estrangeira, tão longe essa terra era e tão deslocados estavam de tudo.

As Lagoas das Sete Cidades eram claramente uma verde e outra azul e eram lindíssimas. Hoje, são ambas verdes, plenas de limos, mas continua-se a vender o produto turístico como se nada tivesse mudado. A beleza desapareceu – embora todos finjam que não e até a considerem uma Maravilha de Portugal. O tempo tudo muda mas o ser humano, cegamente teimoso, vai preservando a ideia quando a realidade já morreu.

No Natal, havia laranjas e grãos que germinavam em tigelinhas. O São Nicolau bem depressa passou a Pai Natal. O bacalhau entrou na tradição não sei bem como, porque em minha casa comia-se frango…

Com 5 anos, eu tive infância nestes Açores. Hoje, são outra verdade. O Hospital onde nasci já não existe – é um grande edifício vazio e inútil. As casas onde morei são prédios de apartamentos onde vivem universitários que ignoram que ali havia árvores. Mas, certamente, reciclam o lixo. Certamente, hoje, a vida é melhor nestes Açores. Sucede que, porém, já não são a minha terra nem eu sou essa menina.

Por isso, em certos dias, apetece dizer como Nemésio quando regressou à Terceira e, olhando-a, já não a reconheceu como sua: “Começamos a ser estrangeiros onde nascemos, ou como?!”