Há 30 anos, eu era pequena e os Açores eram completamente diferentes do que
são hoje.
De quando era criança, recordo uns Açores muito rurais, onde às vezes
passavam cavalos a par dos carros, pois na época esse era o meio de transporte
dos lavradores que vinham à cidade tratar de afazeres.
Para todo o lado que fossemos, encontrávamos vacas. Era impossível ir dar
um passeio “ao campo” (pomposo nome com se designavam as freguesias) sem ter de
parar o carro por causa das vacas no meio da estrada; passava-se ali tanto
tempo como num engarrafamento.
As bolachas e rosquilhas feitas em casa eram prática semanal para muitas
famílias; outras coziam massa sovada e bolo ou pão de milho e outros torciam alfenim
(tudo dependia da ilha onde se tinha nascido). Esses acepipes hoje servidos aos
turistas como delícias tradicionais eram coisas corriqueiras.
O padeiro andava de porta em porta; o leiteiro também. Vinham de manhã,
numas motas com caixa larga atrás, e foi assim que aprendi a fazer as primeiras
contas. Era uma poluição sonora sem par, o leite era “leite do dia” em
saquinhos e o pão só tinha duas variedades – não se conheciam todos estes pães
com passas, cereais, sementes e ninguém se preocupava em comer pão integral.
Nas festas com arraiais, era normal comer bombons de açúcar, daqueles que
se vendem na rua. Hoje, as mães dizem “credo, que nojo, isso é só porcaria!” e
fazem a conta à glicémia.
Havia loicinhas de barro para as crianças, a dita loiça da Vila. Hoje, os
artesãos da loiça da Vila desapareceram porque se dermos loicinha de barro às
crianças somos acusados de termos fornecido brinquedos não homologados pelas
normas da União Europeia. De facto, de acordo com as normas de hoje em dia, ser
criança há 30 anos era tão perigoso que é um milagre termos escapado
razoavelmente inteiros.
A educação era, sem dúvida, diferente. Pessoalmente, como fui criada pelos
meus avós e tive a invulgar sorte de ter a mesma professora e a mesma turma nos
4 anos da Primária, tenho uma lembrança muito viva, alimentada pelas conversas
que ainda hoje mantenho com estes colegas quando nos juntamos. Contrariamente
aos dias correntes, podíamos não passar de classe se não soubéssemos o
suficiente, a professora tinha o direito de nos bater nas mãos com régua e de
nos castigar. A escola era uma instituição: trocavam-se roupas, brinquedos e
alguns fugiam de famílias onde viviam vidas de fazer corar argumentistas
dramáticos.
Na escola, tínhamos de cantar canções religiosas e rezar à imagem da Virgem
Maria. Os que não eram católicos estavam dispensados de rezar; mas a influência
das outras crianças era tão grande que todos acabávamos por rezar na mesma. Foi
um truque que deu resultado pois hoje sei mais sobre o Catolicismo do que
muitos católicos.
Na escola primária, decorávamos rios e distritos do nosso país, sendo que
nas nossas ilhas não havia rios nem distritos, nem tão pouco zonas de “gado
ovino e cavalar” (Baixo Alentejo e Santarém… ainda recordo ter falhado esta
pergunta na terceira classe).
Ainda não havia whale-watching. Matar baleias não era crime e ninguém
achava que o mar era um parque de diversões. A tourada ainda não era um
problema, era só tradição. Ninguém precisava de guia para subir o Pico. Ninguém
reciclava o lixo e as fraldas não eram descartáveis.
Os romeiros não suscitavam reportagens de TV; apenas respeito. Relembro um
intercâmbio que a Primária do Nordeste de S. Miguel fez connosco e foi como se
estivéssemos recebendo uma delegação estrangeira, tão longe essa terra era e
tão deslocados estavam de tudo.
As Lagoas das Sete Cidades eram claramente uma verde e outra azul e eram
lindíssimas. Hoje, são ambas verdes, plenas de limos, mas continua-se a vender
o produto turístico como se nada tivesse mudado. A beleza desapareceu – embora
todos finjam que não e até a considerem uma Maravilha de Portugal. O tempo tudo
muda mas o ser humano, cegamente teimoso, vai preservando a ideia quando a
realidade já morreu.
No Natal, havia laranjas e grãos que germinavam em tigelinhas. O São
Nicolau bem depressa passou a Pai Natal. O bacalhau entrou na tradição não sei
bem como, porque em minha casa comia-se frango…
Com 5 anos, eu tive infância nestes Açores. Hoje, são outra verdade. O
Hospital onde nasci já não existe – é um grande edifício vazio e inútil. As
casas onde morei são prédios de apartamentos onde vivem universitários que
ignoram que ali havia árvores. Mas, certamente, reciclam o lixo. Certamente,
hoje, a vida é melhor nestes Açores. Sucede que, porém, já não são a minha
terra nem eu sou essa menina.
Por isso, em certos dias, apetece dizer
como Nemésio quando regressou à Terceira e, olhando-a, já não a reconheceu como
sua: “Começamos a ser estrangeiros onde nascemos, ou como?!”