“A vida é o dia de hoje.” Nunca pensamos na fragilidade fugaz que é o fio
da nossa respiração. Nunca nos detemos sobre isso, para nossa própria
sobrevivência. Porque se nos dedicarmos a pensar que, a qualquer momento, por
acidente rápido ou por insidiosa doença cultivada em silêncio, a vida se rompe,
apercebemo-nos da nossa pequenez e impotência. Não há fé ou sistema de saúde
que nos salve da hora em que o fio de vida acaba.
Difícil é escutar que a vida pode acabar já, inesperadamente. “A morte é a
curva da estrada” apenas, assim o dizem os poetas, e dizem os cientistas que
acreditam na eterna transformação da matéria e dizem os crentes que crêem na
eternidade do espírito. Mas nenhuma destas opções nos agarra a mão e nos
conforta o ânimo quando surge um aperto estrangulador, quando aparece o buraco
fundo e se perde o pé na iminência possível da vida se acabar.
Numa questão de minutos, pensa-se no que se pode fazer para evitar a perda
de ar e sangue, para evitar que desapareça o fio breve da vida. O que se pode
fazer é sempre uma ingénua tentativa perante o inexorável que um dia chegará – essa
dor que todos os dias se esquece e se esconde surge, então, ali como ferida
aberta.
Há uma opção única na vida, da qual derivam todas as outras: escolher
viver. Perante essa vontade férrea está provado que muitas células foram
obrigadas a regenerar-se. O porquê não se sabe (interessa sabê-lo? Há ciências
exactas que digam respeito a algo tão volúvel e único como o ser humano?)
Mas não basta a força do ser. Por não bastar, em desespero, muitos se
voltam para o transcendente. Outros, agarram-se com esperança à ciência dos
cirurgiões. E há ainda os que hesitam entre o Deus que nunca viram e o deus de
bata branca, cada qual inacessível a seu modo, cada qual pensando que o ser
humano que ali está é mais um dentro da espécie – e é, de facto, não diferente
do que veio antes ou do que vem a seguir excepto talvez por alguma curiosidade
genética; o que faz o ser humano único não cabe na rede de células da qual Deus
e deus tratam e não lhes compete saber disso. A vida, no que tem de mais cru,
não trata de pormenores particulares e não tem relação com o Amor que lhe dá
fôlego.
“A vida é pra valer/ E não se engane não/ tem uma só/ Duas mesmo que é bom/
Ninguém vai me dizer que tem/ Sem provar muito bem provado/ Com certidão
passada em cartório do céu”. Ao lado, está uma mãe que tem uma filha que já
saíu do Bloco e correu tudo bem. É uma senhora imensamente triste. Pergunto
porquê, imaginando que a menina terá outras sequelas ou talvez dramas que Deus
e deus não tratam. A senhora diz: “Esta filha é uma gémea de 10 anos.” E
corrige: “Era uma gémea. A outra morreu há dois anos.” Não sei se Deus e deus
sabem que esta é a última filha desta senhora; que a mãe sabe que é injusto
pensar na outra quando esta sofre, mas nunca há-de evitá-lo. Talvez a menina,
que perdeu a gémea, se sinta também com menos de si do que antes, menos da tal
vontade férrea de viver e, paradoxalmente, valendo por dois.
Assim, por momentos, acompanhada na dor de outro, o terrível sentimento
humano de ver a nossa dor mais pequena. “ A vida é curta mas as emoções que
podemos deixar duram uma eternidade. A vida não é de se brincar porque um belo
dia se morre.”