Acaba de ser lançado o DSM-5. Parece uma bomba mas não, é um livro. O
Diagnostic and Statiscal Manual é uma publicação americana que se converteu na
Bíblia da Psiquiatria em quase todo o mundo. De vez em quando, sofre
alterações, porque as mudanças da sociedade implicam que algumas coisas deixem
de ser consideradas perturbações enquanto outras assumem esse estatuto e, para
maior confusão, algumas perturbações são incluídas noutras e ainda há as que
mudam de nome. Portanto, mal comparado é como fazer acordos ortográficos só que
na Psiquiatria.
O problema é que não estamos a falar de como se escreve, mas sim de como se
classificam pessoas. Ora, colocar um rótulo numa pessoa pode ser definidor de
tudo o que lhe vai acontecer depois. Não é pois de estranhar que os psiquiatras
não se entendam sobre as alterações e da mesma forma que há ferrenhos adeptos
há também os que discordam por completo das novas directivas. Não sendo eu do
ramo, só me surpreende a facilidade com que hoje se (des)atribuem “problemas
mentais”, numa sociedade onde a ideia de doença mental é um estigma.
Vejamos: você tem dificuldade em desfazer-se dos seus objectos,
independentemente do seu valor real? Saiba que agora isso é um distúrbio
mental, e você tem “distúrbio de acumulação” (hoarding disruptive disorder;
estou a traduzir do inglês, pois não vi a versão portuguesa). Você ingere
comida excessivamente, num período de duas horas, de vez em quando? Saiba que
passou a ser classificado mais um distúrbio alimentar, o da “Alimentação
Compulsiva” (que deve ser o de quase todos os portugueses ao jantar…) Terá você
a mania de tirar as pelinhas junto à unha? Ah, meu amigo, isso é “skin picking
disorder” e fique sabendo que é, desde a semana passada, uma doença mental. Há
mais, mas já estou cansada de debitar normalidades.
Para além disso, as pessoas com Síndroma de Asperger já não o têm; agora
têm “espectro autístico”; os bipolares têm uma nova classificação (aliás,
sempre que esta Bíblia muda, os bipolares têm uma nova classificação, o que me
faz pensar que está um bipolar a fazer o manual!); e, para gáudio dos pais que
recorrem a medicamentos para manter as crianças caladas e quietas todo o tempo,
incluem-se os critérios de “disruptive mood disorder” (a birra infantil transformada
em bipolaridade infantil com direito a tratamento!) Para cúmulo, as parafilias
foram todas (des)ordenadas outra vez, sendo que agora a pessoa pode ter um
comportamento parafílico e isso não constituir um distúrbio – já se está a ver o grande aproveitamento que
os pedófilos podem fazer disto…
É grave. Por um lado, abriram-se de tal modo as portas do comum que se fez
de qualquer pessoa um potencial doente mental (eu, que sempre roí as peles das
unhas, descobri hoje que tenho de me pôr a pau!); por outro lado,
desvalorizou-se tanto o comportamento incomum que os verdadeiros doentes são
relativizados, e quiçá podem ser despenalizados de crimes, se este manual for
seguido à risca.
Por isso, enquanto leiga, gostava de
ver uma nova classificação: todo o doente mental seria aquele que
deliberadamente faz mal aos outros, i.e. as pessoas sem empatia, que é marca de
todo o psicopata perigoso. Para mim, isto é somente maldade pura, mas já que a
doença está na moda…
Entretanto, gostava de dizer que não sou minimamente contra a Psiquiatria.
Pelo contrário. Acho que os médicos (incluindo psiquiatras), têm uma vocação e
uma grande dose de bom senso e de humanismo. O problema é haver muitos
licenciados em medicina e poucos médicos.