... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, August 30, 2013

O grande problema do nosso tempo

Perguntaram-me "Qual acha que é o grande problema do nosso tempo?" e isto veio na sequência de uma daquelas conversas sociais onde toda a gente diz pequenos nadas com grande distinção, parecendo todos nós de repente muito importantes e eloquentes como se as nossas opiniões – que não passam disso mesmo – fizessem alguma diferença ao mundo.
Bastaram-me dois segundos para dizer: "É a indiferença."
O meu interlocutor fez aquele ar sério e levemente enfadado das pessoas que, contrariamente ao Sócrates grego, sabem sempre muito e logo ali me fez um rol das misérias deste mundo (as quais, claro, nunca experimentou, mas citou-me vários autores e suas panaceias a aplicar a essas desgraças), provando-me, pois, que a minha resposta era “fantasiosa, apressada e até indigna de uma rapariga que parece tão inteligente.”
Não tive oportunidade de explicar a minha perspetiva – que em nada mudará a vida de ninguém, mas acho que podíamos pensar um pouco sobre isto… Quanto mais não fosse para não corrermos o risco de sermos indiferentes.
Já nada choca a esmagadora generalidade das pessoas. Nada as comove. Nada as motiva a agir, em nome de um bom sentimento, da justiça, da verdade, e muito menos para o outro.
Habituadas que estão a um constante bombardeamento de imagens de miséria, e, sobretudo, apavoradas com a possibilidade de perderem o que têm e virem a enquadrar-se no rol dos miseráveis, já poucos abrem a mão para ajudar o semelhante. Pelo contrário. Viram a cara, e não é por nojo. É por receio de estarem a olhar a sua futura imagem. É também por medo de que a pobreza seja contagiosa, como uma doença.
Aos mais doentes e mais fracos, o mesmo exato sentimento é reservado. Repulsa a que não é alheio receio do futuro, acidental ou natural. Basta ver o modo como são tratados os idosos, os acamados, os hospitalizados, os deficientes mentais – e recordo aquela absurda carta anónima que foi notícia a semana passada nos E.U.A., assinada por “uma mãe de um filho normal” que criticava a sua vizinha cujo filho autista a incomodava com “os seus ruídos animalescos” e lhe sugeria “metê-lo num zoo” ou eutanasiá-lo. Foi uma mãe a sugeri-lo a outra. Certamente uma mãe que desconhece o que é sê-lo.
Quando há conhecimento de uma maldade extrema como esta ou bem pior, que inflige sofrimento profundo, psíquico ou físico, a alguém, viram-se as caras. Os vizinhos dos maltratados nunca ouvem nada, mas queixam-se se a música está alta. A polícia não chega a tempo de ver crimes, e é admitido que, portanto, não aconteceram (como se um criminoso minimamente inteligente cometesse ofensas em público). Os médicos receitam Ritalina aos meninos que se magoam muito porque são hiperativos e não questionam os pais sobre tanta ferida. Os professores querem é que estejam todos calados – à semelhança do que querem os governantes. Toda a gente tem os seus próprios problemas e “não está para arranjar mais”.
A maldade aproveita-se deste sentimento de indiferença e floresce. Sempre foi assim ao longo da História da Humanidade. Uma colega minha que viveu a II Grande Guerra em criança num campo de concentração conta que após ver tanta morte, fome e dor, os miúdos já passavam pelas pilhas de mortos sem sequer levantar os olhos. Só davam graças por não estar lá. A verdade é que o instinto de sobrevivência é o maior instinto do Homem e, em situações de extrema crise, ele vem ao de cima da forma mais egoísta e selvagem.
Nada está mais sujeito a ruir do que um mundo onde todos tentam sobreviver isoladamente. É este, onde estamos agora.


Friday, August 16, 2013

Vida II

O Supremo Tribunal de El Salvador recusou a Beatriz (22 anos e grávida de 23 semanas) a interrupção da gravidez que ela pretendia. Beatriz sofre de uma forma de lúpus cujas manifestações põem em risco a sua vida durante o parto e, além disso, ficou provado que o bebé sofria de anencefalia, o mesmo é dizer que ia nascer sem uma parte considerável do encéfalo e que sobreviveria apenas algumas horas após o nascimento.
O Tribunal disse a Beatriz que os direitos da mãe nunca prevalecem sobre os da vida que ela gera. Se eu não soubesse qual era a história, a frase parecer-me-ia correcta.

Porém, esta mãe não estava apenas em risco de vida. Ela já sabia que o filho ia morrer (se é que viver sem cérebro durante umas horas se pode chamar viver inteiramente). Portanto, o  Supremo não condenou Beatriz apenas à hipótese de morte própria mas também à certeza de dar à luz um filho que só acalentaria por umas horas, vendo-o gemer e ter reflexos, com uma depressão côncava no sítio onde é suposto estar a cabeça. Não sei se o Supremo entende a ideia de tortura nos tempos modernos, mas é mais que certo que condenou à tortura uma pessoa que não fez um crime. Além disso, Beatriz já tinha um filho de um ano; se morresse, deixava um órfão, demasiado jovem para viver sem mãe.

 Se Beatriz desobedecesse à ordem incorria em 50 anos de prisão. Por contraste, o médico que fizesse o aborto teria apenas 12 anos de encarceramento. A disparidade da pena existe porque Beatriz é a mãe, porque lhe compete estar atenta à pílula ou talvez porque a apregoada igualdade dos direitos femininos só existe em teoria.

A Igreja de El Salvador congratulou-se por esta decisão pró-vida (???) do Supremo Tribunal. O Governo, na pessoa da Ministra da Saúde, autorizou uma cesariana pré-termo a Beatriz.

Faço parêntesis, pois ainda me surpreende um Governo ter de autorizar cesarianas em caso de risco ou, como recentemente aconteceu em Portugal, o Tribunal ordenar laqueações de trompas. Mas adiante, que nem é a liberdade que discuto mas sim e tão só o direito à existência.

Beatriz sobreviveu; a criança morreu cinco horas depois. Não houve aborto, a bem da nação.

Mas podia não ter corrido tão bem – “bem” porque isto foi o melhor possível, dentro de uma situação que os poderes instituídos tornaram bem pior do que era à partida.

Na Irlanda, Savita Hallapanavar, numa situação similar, não sobreviveu. Mas a Igreja ficou descansada, pois um anjo subiu ao céu em vez de permanecer no limbo; e o Tribunal suspirou de alívio porque se cumpriu a lei. Não houve pecado nem desobediência civil. Só dor e violência gratuita, acobertadas por uma sociedade evoluída. Mas antes isso do que derrubar ídolos com pés de barro.


Talvez o grande desafio da nossa época seja percebermos que não pode haver uma lei para todos os casos, cegamente analisados pela mesma regra. Independentemente de convicções ou crenças, cada caso é único, e deve merecer atenção e decisão individual. É um erro comum pensar-se que igualdade é o mesmo que justiça. No entanto, a justiça pode e deve contribuir para a igualdade. 

Friday, August 2, 2013

As solitárias moderninhas

Tenho uma colega já de certa idade que não tem família, e, portanto, passa as férias a viajar por onde lhe apetece. Por mais livre que a sua vida pareça, ouço sempre comentários  sobre a “solteirona” e isso levou-me a pensar: porque é que, numa sociedade que se diz igualitária, os homens celibatários são sempre tidos como interessantes e até “bons partidos” enquanto que as mulheres são vistas como frias e desesperadas? Pela mesma razão que os cabelos brancos dos homens dão charme e os das mulheres mostram a idade. A nossa cultura deu à menopausa um enorme peso, e tornou muito dura a passagem desse período para alguém que não chegou a ter filhos. Aliás, em inglês o termo “spinster” (solteirona) é reservado apenas para quem nunca casou nem teve descendência e traduz uma falsa ideia antiquada de virgindade preservada e de rigidez, tanto física como de ideais. O termo “bachelor” (solteirão) não tem qualquer conotação pejorativa e, embora designe quem nunca deu o nó, nada tem a ver com filhos – porque os homens não sabem ao certo quantos filhos têm (?)

Estou longe dessa realidade, mas há outras das quais posso falar com maior conhecimento. Por exemplo, ainda hoje, uma mãe sozinha é vista como alguém com um comportamento irregular. Aqueles que já estão a torcer o nariz, experimentem arranjar emprego, alugar casa, pedir empréstimos e qualquer questão legal ou burocrática comum. Quem não tem companheiro é, em primeiro lugar, vista como alguém desesperada por tempo, por dinheiro e por apoio porque “coitadinha, tem uma família sozinha” e, em segundo lugar, promíscua pois o suposto desespero mencionado aliado ao facto de se ter separado voluntariamente (no caso de não ter enviuvado) dá a ideia de que “atenção, está à procura de alguém”. Raros são aqueles a quem ocorre que uma mulher racional é perfeitamente capaz de organizar a sua vida, a curto e a longo prazo, da mesma forma que um homem (ou melhor, se não tiver de tratar de um homem dependente ou se tiver de suportar um violento). Para além disso, se já era ela que tratava da família antes de se separar, qual a diferença, excepto o facto de que agora tem menos trabalho e preocupações? E porque havia ela de estar à procura de um marido se abdicou dessa realidade?

Claro que estes exemplos se reportam a mulheres inteligentes. Concordo que não há muitas – nem há muitos homens inteligentes, embora de um e de outro existam imitações, que estão para os casos reais como o jogo electrónico d’Os Sims está para a vida…

Também admito que é mais difícil para as inteligentes terem companheiros. A nossa sociedade coloca o homem na eterna posição de professor e a mulher na de aprendiz, pelo que é necessário um homem muito seguro de si para perceber que esses papéis inflexíveis são absolutamente  irrealistas e que, por conseguinte, onde há duas cabeças pensantes há sempre dois professores e dois aprendizes que se vão revezando consoante os momentos. Porém, quando uma cabeça insegura se sente ultrapassada só tem uma forma de se fazer obedecer: submeter pelo domínio, seja manipulativo e astuto, seja por meio da força bruta. Essas tentativas de submissão são válidas tanto para homens como para mulheres – pois também há mulheres imensamente dominadoras,  que se escudam numa capa “soft” de eterno feminino para melhor dominar.


Voltando ao início: a mulher conseguiu, seguramente, muitas coisas na nossa sociedade. Mas, do ponto de vista cultural, ainda é olhada de lado se decide não ter par. Já o homem, par ou ímpar, continua a manter bom status. Ainda consideramos que a mulher jamais pode ser alguém sem um homem porque o papel primordial da mulher é “ser mulher de alguém” e o do homem é ser ele próprio.