O Supremo Tribunal de El Salvador recusou a Beatriz (22 anos e grávida de
23 semanas) a interrupção da gravidez que ela pretendia. Beatriz sofre de uma
forma de lúpus cujas manifestações põem em risco a sua vida durante o parto e,
além disso, ficou provado que o bebé sofria de anencefalia, o mesmo é dizer que
ia nascer sem uma parte considerável do encéfalo e que sobreviveria apenas
algumas horas após o nascimento.
O Tribunal disse a Beatriz que os direitos da mãe nunca prevalecem sobre os
da vida que ela gera. Se eu não soubesse qual era a história, a frase
parecer-me-ia correcta.
Porém, esta mãe não estava apenas em risco de vida. Ela já sabia que o
filho ia morrer (se é que viver sem cérebro durante umas horas se pode chamar
viver inteiramente). Portanto, o Supremo
não condenou Beatriz apenas à hipótese de morte própria mas também à certeza de
dar à luz um filho que só acalentaria por umas horas, vendo-o gemer e ter
reflexos, com uma depressão côncava no sítio onde é suposto estar a cabeça. Não
sei se o Supremo entende a ideia de tortura nos tempos modernos, mas é mais que
certo que condenou à tortura uma pessoa que não fez um crime. Além disso,
Beatriz já tinha um filho de um ano; se morresse, deixava um órfão, demasiado
jovem para viver sem mãe.
Se Beatriz desobedecesse à ordem
incorria em 50 anos de prisão. Por contraste, o médico que fizesse o aborto
teria apenas 12 anos de encarceramento. A disparidade da pena existe porque
Beatriz é a mãe, porque lhe compete estar atenta à pílula ou talvez porque a
apregoada igualdade dos direitos femininos só existe em teoria.
A Igreja de El Salvador congratulou-se por esta decisão pró-vida (???) do
Supremo Tribunal. O Governo, na pessoa da Ministra da Saúde, autorizou uma
cesariana pré-termo a Beatriz.
Faço parêntesis, pois ainda me surpreende um Governo ter de autorizar
cesarianas em caso de risco ou, como recentemente aconteceu em Portugal, o
Tribunal ordenar laqueações de trompas. Mas adiante, que nem é a liberdade que
discuto mas sim e tão só o direito à existência.
Beatriz sobreviveu; a criança morreu cinco horas depois. Não houve aborto,
a bem da nação.
Mas podia não ter corrido tão bem – “bem” porque isto foi o melhor possível,
dentro de uma situação que os poderes instituídos tornaram bem pior do que era
à partida.
Na Irlanda, Savita Hallapanavar, numa situação similar, não sobreviveu. Mas
a Igreja ficou descansada, pois um anjo subiu ao céu em vez de permanecer no
limbo; e o Tribunal suspirou de alívio porque se cumpriu a lei. Não houve pecado
nem desobediência civil. Só dor e violência gratuita, acobertadas por uma
sociedade evoluída. Mas antes isso do que derrubar ídolos com pés de barro.
Talvez o grande desafio da nossa época seja percebermos que não pode haver
uma lei para todos os casos, cegamente analisados pela mesma regra. Independentemente
de convicções ou crenças, cada caso é único, e deve merecer atenção e decisão
individual. É um erro comum pensar-se que igualdade é o mesmo que justiça. No
entanto, a justiça pode e deve contribuir para a igualdade.