... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, August 16, 2013

Vida II

O Supremo Tribunal de El Salvador recusou a Beatriz (22 anos e grávida de 23 semanas) a interrupção da gravidez que ela pretendia. Beatriz sofre de uma forma de lúpus cujas manifestações põem em risco a sua vida durante o parto e, além disso, ficou provado que o bebé sofria de anencefalia, o mesmo é dizer que ia nascer sem uma parte considerável do encéfalo e que sobreviveria apenas algumas horas após o nascimento.
O Tribunal disse a Beatriz que os direitos da mãe nunca prevalecem sobre os da vida que ela gera. Se eu não soubesse qual era a história, a frase parecer-me-ia correcta.

Porém, esta mãe não estava apenas em risco de vida. Ela já sabia que o filho ia morrer (se é que viver sem cérebro durante umas horas se pode chamar viver inteiramente). Portanto, o  Supremo não condenou Beatriz apenas à hipótese de morte própria mas também à certeza de dar à luz um filho que só acalentaria por umas horas, vendo-o gemer e ter reflexos, com uma depressão côncava no sítio onde é suposto estar a cabeça. Não sei se o Supremo entende a ideia de tortura nos tempos modernos, mas é mais que certo que condenou à tortura uma pessoa que não fez um crime. Além disso, Beatriz já tinha um filho de um ano; se morresse, deixava um órfão, demasiado jovem para viver sem mãe.

 Se Beatriz desobedecesse à ordem incorria em 50 anos de prisão. Por contraste, o médico que fizesse o aborto teria apenas 12 anos de encarceramento. A disparidade da pena existe porque Beatriz é a mãe, porque lhe compete estar atenta à pílula ou talvez porque a apregoada igualdade dos direitos femininos só existe em teoria.

A Igreja de El Salvador congratulou-se por esta decisão pró-vida (???) do Supremo Tribunal. O Governo, na pessoa da Ministra da Saúde, autorizou uma cesariana pré-termo a Beatriz.

Faço parêntesis, pois ainda me surpreende um Governo ter de autorizar cesarianas em caso de risco ou, como recentemente aconteceu em Portugal, o Tribunal ordenar laqueações de trompas. Mas adiante, que nem é a liberdade que discuto mas sim e tão só o direito à existência.

Beatriz sobreviveu; a criança morreu cinco horas depois. Não houve aborto, a bem da nação.

Mas podia não ter corrido tão bem – “bem” porque isto foi o melhor possível, dentro de uma situação que os poderes instituídos tornaram bem pior do que era à partida.

Na Irlanda, Savita Hallapanavar, numa situação similar, não sobreviveu. Mas a Igreja ficou descansada, pois um anjo subiu ao céu em vez de permanecer no limbo; e o Tribunal suspirou de alívio porque se cumpriu a lei. Não houve pecado nem desobediência civil. Só dor e violência gratuita, acobertadas por uma sociedade evoluída. Mas antes isso do que derrubar ídolos com pés de barro.


Talvez o grande desafio da nossa época seja percebermos que não pode haver uma lei para todos os casos, cegamente analisados pela mesma regra. Independentemente de convicções ou crenças, cada caso é único, e deve merecer atenção e decisão individual. É um erro comum pensar-se que igualdade é o mesmo que justiça. No entanto, a justiça pode e deve contribuir para a igualdade.