... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 20, 2013

Hatikvah

Há alguns anos atrás, tive uma colega numa Universidade do estrangeiro que tinha vivido a tenra infância na época da Segunda Guerra Mundial. Dada a sua idade avançada, só dava umas poucas de aulas, até porque já estava na reforma, mas ainda podia partilhar o seu saber. Era judia e, na época da Guerra, vivia num desses países de Leste que Hitler dizimou, deixando-os quase irreconhecíveis. Não que fosse seu hábito falar disso, mas, certo dia, contou-me como tinha escapado. Em sua casa, tinham construído à pressa um abrigo falso (daqueles que tantas vezes vemos no cinema) mas era tão ínfimo e estreito que mal dava para duas pessoas e, no dia fatal em que lhe entraram pela casa dentro, só a pequenina e a mãe ficaram dentro do abrigo, por cujas frestas viram o pai ser levado. Nunca mais o viu, até porque, mesmo que fosse levada para um campo de concentração, as mulheres e os homens eram imediatamente separados. A partir daí, existiu uma história complexa de fuga e de assumir de identidades falsas, de resguardo e de vida marginal – uma história que durou tantos anos quantos foram precisos para ela e a mãe atravessarem países, e chegarem, finalmente, a um lugar que consideraram seguro, onde refizeram uma vida que lhes coube numa malinha e numa viagem de barco.

 Mas o que eu quero sublinhar desta história é aquilo que nunca mais esqueci. É o facto da minha colega dizer, do meio das suas rugas sorridentes: “Não penses que sou uma pessoa triste. O mundo sempre teve e sempre terá muitas coisas belíssimas. Estarmos vivos é uma dádiva tão grande que não a podemos desperdiçar com amargura.” À primeira vista, quase parece literatura cor-de-rosa. Mas, conhecendo-a, é difícil não admitir que é raro encontrar alguém que apreciasse tanto os pequenos prazeres de existir.

Também lhe estou grata por ela me ter ensinado um truque que me tem sido muito útil: “nas situações mais desesperadas da vida, tenta viver com a maior normalidade e humor.” De facto, isto ajuda muito a manter o equilíbrio. Se vivemos uma situação absolutamente horrífica – o Holocausto é um bom exemplo, mas há outros no mundo actual - , viver a rotina como se não houvesse turbulência pode ser impossível, mas é muito benéfico para a estabilidade manter um certo humor. O filme “A Vida É Bela” é um óptimo exemplo de como se pode viver com ternura mesmo dentro do horror – e, sobretudo, transmitir esse carinho aos que nos são mais queridos.


Talvez seja esta a maior lição judaica: hatikvah - aquela capacidade extraordinária de nunca perder a esperança num futuro dia dourado, o que faz com todos os dias sejam já um pouco raiados de sol. É que nem mesmo uma força que nos desmembre “pode cortar a raiz ao pensamento”; assim se cantava em Portugal, mas hoje… hoje, já se esqueceram (?). No entanto, o mais bonito e mais importante é que hatikvah não depende de nenhum factor exterior – cada qual a tem ou não tem, conforme a sua capacidade íntima. E continuará a mantê-la, independentemente de holocaustos. 

Friday, December 6, 2013

Biblos


Lembram-se daquela experiência do violinista Joshua Bell no metro de NY, onde ele tocou incógnito como qualquer músico de rua? O mesmo Joshua Bell cujos concertos esgotam semanas antes quando ele toca no Metropolitan não conseguiu mais do que umas moedas, menos do que outros músicos que tocavam por ali. Quando perde a aura que lhe dá o seu nome, Bell não é melhor que um músico de esquina. É a fama de Bell e não o seu real talento que vende. Em 2011, escrevi um artigo (“Essencialistas”) para este jornal que falava desta experiência e da teoria psicológica que explica que a admiração que sentimos por alguém é fruto da construção mental que fizemos dele. Em resumo: somos nós os artífices de uma opinião que pode não coincidir minimamente com os factos reais, e somo-lo apenas por via de uma ilusão por nós construída. O talento de Bell mantém-se, na sala sinfónica ou no metro… mas o que atrai o público é a figura de Bell, famoso ídolo, e não a sua música.

Adiante. Existe o lado oposto desta teoria, que só ajuda ao seu suporte, comprovado pela aluna de um internato inglês cuja professora de Literatura criticava sistematicamente as suas composições. A aluna copiou um poema de Shelley e assinou o seu nome. Recebeu a mesma nota medíocre de sempre… no poema do grande Shelley. Isto mostra que, quando não simpatizamos com alguém, o nosso julgamento também é feito a priori mas automaticamente pela negativa, e o juízo de valor atribuído também não constata o conteúdo real.

Tudo isto se agrava se falamos da opinião de multidões (como no caso Bell), porque na psicologia de massas, o que um fizer, os restantes seguirão. Como dizia Gustave Le Bon, as multidões nunca se elevam à inteligência do seu membro superior, pelo contrário; descem sempre ao pensamento básico do seu membro mais inferior. De tal modo os estudos feitos até hoje à Psicologia das Multidões nos demonstram que esta é irracional e primitiva, que se torna quase ridículo acreditar que a opinião da maioria é válida de ser seguida, pois a primeira premissa do pensamento de uma massa é que ele não funciona de acordo com razões e desconhece argumentos lógicos. Move-se pela emoção volátil, sendo normal as multidões mudarem de opinião frequentemente (como exemplo claro, veja-se a crucificação de Cristo e a quantidade de seguidores que teve… apenas uns anos depois!).

As opiniões das massas são influenciadas por quê, se não têm qualquer lógica? Pela tal ilusão. Esta, por sua vez, é sustentada em imagens, palavras, e líderes. O mundo precisa de pessoas a quem adorar e, se uns adoram Joshua Bell (só na sala de concertos), outros adoram o Cristiano Ronaldo. Aliás, é discutível o que seria do Ronaldo sem os media para divulgarem a sua imagem – aquela que ele quer passar, obviamente. Poucas pessoas famosas seriam grandes sem uma excelente gestão da sua “persona” pública.

As opiniões das multidões divulgam-se por contágio, como a varicela. Os saudáveis (os que acharam que Joshua Bell estava a tocar bem no metro porque pensam racionalmente) são logo classificados como malucos e calam-se depressa.


Com tudo isto, o melhor conselho a dizer às multidões é o conselho britânico: “Nunca julguem um livro pela sua capa”. Bom, se for um livrinho do Cebolinha, vá lá… Agora, se for uma obra densa do estilo “Crime e Castigo”, convenhamos que julgar 500 páginas de Dostoievsky pelo grafismo e lombada não é lá de muito tarelo…