Há alguns anos atrás, tive uma colega numa Universidade do
estrangeiro que tinha vivido a tenra infância na época da Segunda Guerra
Mundial. Dada a sua idade avançada, só dava umas poucas de aulas, até porque já
estava na reforma, mas ainda podia partilhar o seu saber. Era judia e, na época
da Guerra, vivia num desses países de Leste que Hitler dizimou, deixando-os
quase irreconhecíveis. Não que fosse seu hábito falar disso, mas, certo dia,
contou-me como tinha escapado. Em sua casa, tinham construído à pressa um
abrigo falso (daqueles que tantas vezes vemos no cinema) mas era tão ínfimo e
estreito que mal dava para duas pessoas e, no dia fatal em que lhe entraram
pela casa dentro, só a pequenina e a mãe ficaram dentro do abrigo, por cujas
frestas viram o pai ser levado. Nunca mais o viu, até porque, mesmo que fosse
levada para um campo de concentração, as mulheres e os homens eram
imediatamente separados. A partir daí, existiu uma história complexa de fuga e
de assumir de identidades falsas, de resguardo e de vida marginal – uma
história que durou tantos anos quantos foram precisos para ela e a mãe
atravessarem países, e chegarem, finalmente, a um lugar que consideraram seguro,
onde refizeram uma vida que lhes coube numa malinha e numa viagem de barco.
Mas o que eu quero
sublinhar desta história é aquilo que nunca mais esqueci. É o facto da minha
colega dizer, do meio das suas rugas sorridentes: “Não penses que sou uma pessoa
triste. O mundo sempre teve e sempre terá muitas coisas belíssimas. Estarmos
vivos é uma dádiva tão grande que não a podemos desperdiçar com amargura.” À
primeira vista, quase parece literatura cor-de-rosa. Mas, conhecendo-a, é
difícil não admitir que é raro encontrar alguém que apreciasse tanto os
pequenos prazeres de existir.
Também lhe estou grata por ela me ter ensinado um truque que
me tem sido muito útil: “nas situações mais desesperadas da vida, tenta viver
com a maior normalidade e humor.” De facto, isto ajuda muito a manter o
equilíbrio. Se vivemos uma situação absolutamente horrífica – o Holocausto é um
bom exemplo, mas há outros no mundo actual - , viver a rotina como se não houvesse
turbulência pode ser impossível, mas é muito benéfico para a estabilidade manter
um certo humor. O filme “A Vida É Bela” é um óptimo exemplo de como se pode
viver com ternura mesmo dentro do horror – e, sobretudo, transmitir esse
carinho aos que nos são mais queridos.
Talvez seja esta a maior lição judaica: hatikvah - aquela
capacidade extraordinária de nunca perder a esperança num futuro dia dourado, o
que faz com todos os dias sejam já um pouco raiados de sol. É que nem mesmo uma
força que nos desmembre “pode cortar a raiz ao pensamento”; assim se cantava em
Portugal, mas hoje… hoje, já se esqueceram (?). No entanto, o mais bonito e
mais importante é que hatikvah não depende de nenhum factor exterior – cada
qual a tem ou não tem, conforme a sua capacidade íntima. E continuará a
mantê-la, independentemente de holocaustos.