... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, April 25, 2014

O Povo é Quem Mais Ordena?


A melhor conversa sobre os 40 anos do 25 de Abril ouvi-a eu da boca de uma criança de 7 aninhos. O pai estava a explicar-lhe a Revolução e disse uma frase de pacote que foi, ipsis verbis, isto: “Antes do 25 de Abril, o nosso país vivia na pobreza, na tristeza e no medo.” Aqui, o pai parou um bocadinho a ver se o miúdo tinha entendido e ele, muito sério, perguntou: ”Então e hoje vivemos ricos, felizes e corajosos?” Pois.

Sou mais jovem do que o 25 de Abril e, por esse facto, muitos dirão que não posso sequer opinar sobre a Revolução e muito menos sobre a Ditadura que a antecedeu. Até certo ponto, concordo porque também eu sou da opinião que só quem vive as situações – sejam elas quais forem - é que sabe como as coisas realmente se passaram. No entanto, se há coisa sobre a qual posso opinar é sobre o dia de hoje.

Nos últimos anos, deixou de ser tabu falar-se de pobreza em Portugal. Apesar do novo-riquismo há poucos anos ostentado um pouco por toda a parte (deixo de lado as considerações sobre se terá sido isso que contribuiu para a situação actual), agora os portugueses perderam a vergonha de admitir que há fome, há degradação, há condições sub-humanas. Se antes estas condições afectavam apenas uma franjinha da população, sabemos que hoje uma boa parte desta se encontra na miséria. Há um ano e um trimestre atrás, publicou-se uma sondagem na qual se revelava que mais de 30% da população portuguesa vivia na pobreza real, sem dinheiro para comer. Entretanto, os números foram subindo e cada vez vemos mais notícias que, para além dos números, revelam que a face da pobreza mudou. Agora não são apenas os pedintes, os desempregados e as famílias numerosas. São os idosos – “temos os idosos mais pobres da Europa” era manchete do Diário de Notícias  recentemente – as pessoas cujo salário não chega para satisfazer as necessidades mais básicas de saúde, alimentação e habitação e as famílias monoparentais em que a monoparentalidade se traduz nos filhos serem sustentados por um só progenitor.

E felizes, vivemos? Para não dar a minha opinião e armar-me em cientista munida (novamente) de estatísticas, vou socorrer-me de um estudo da Universidade de Columbia para a ONU que mede a felicidade mundial por países. Portugal também tem vindo a descer a pique – só num ano desceu 12 posições, e está agora na 85ª. Interrogaram-se as pessoas acerca da família, educação, saúde, liberdade de escolha, capacidade económica e relações com a comunidade e instituições públicas. Pelos vistos, os portugueses acham que estes sectores se têm deteriorado muito. Dirão os que gostam da desculpa da crise que a culpa é da “crise económica”, entidade abstracta com a qual ninguem parece ter nada a ver. Bem, se a culpa é dessa senhora, porque raio os países europeus em crise – Grécia, Espanha e Itália – se sentem todos mais felizes do que Portugal? A título de exemplo, a Grécia, com aqueles tumultos todos que se vêem na televisão, está 15 posições à nossa frente.

Então e o medo? O medo é o tabu que resta em Portugal. Alguns têm medo de serem ostracizados o que, num lugar pequeno, já não é dizer pouco; outros têm medo de perder o que lhes custou a construir; outros têm medo que os torturem ou lhes magoem os filhos; enfim, a lista de medos é tão grande que se pode escrever um livro. A prova disso é que um corajoso é algo tão anormal que é olhado como se fosse um doente. O que é não ter medo em Portugal? É dizer, frontalmente, o que muitos sabem e calam. Os que se calam, ameaçados ou não, perpetuam o medo. Não sei se, lato sensu, estávamos preparados culturalmente para a Democracia, pois que a nossa mentalidade continua a subsistir em muitos pontos apoiados na Ditadura.


Um povo pobre, triste e com medo “ordena” alguma coisa – como profetiza a tal canção de Abril? É que já nem as criancinhas enganamos... 

Friday, April 11, 2014

A Banalidade do Mal

Adolf Eichmann era um homem comum. Vinha de uma sólida família, o pai e a madrasta eram protestantes convictos, foi um rapazinho obediente e regular, fazia desporto e tocava violino. Na adolescência, compensou a sua falta de brilhantismo sendo terrivelmente trabalhador. Juntou-se às SS, casou, teve 4 filhos. Era tão dedicado ao trabalho que chegou a tenente-coronel e ficou responsável pela logística de deportação dos judeus para os campos de extermínio. Eichmann fez o que sempre tinha feito: cumpriu as ordens excrupulosamente sem jamais as questionar. Ou melhor: Eichmann nunca parou para pensar pela sua cabeça.

Ontem como hoje, há milhões de homens como Eichmann. Não são pessoas repletas de maus sentimentos. Não são violentos, maldosos, sádicos, invejosos, cheios de raivas secretas. São pessoas banais, quase apagadas no tecido social. Mas obtêm, por sorte, ligações ou até por via do seu esforço contínuo e burocrata, uma certa dose de poder. Como é perigoso colocar poder nas mãos de quem não exerce pensamento próprio! Logo, esse inócuo autómato sente necessidade de cumprir o seu dever e obedecer aos seus superiores que nunca questiona. Daí resulta, como no caso de Eichmann, que um eficiente funcionário do Estado, cumpridor assíduo da Lei, se torna num monstruoso carrasco... mas nunca dá sequer por isso!

No seu julgamento em Israel nos anos 60, Eichmann não negou o que fizera mas insistiu que era um simples executante de ordens, um leal servidor do seu Estado – visto que as decisões não eram suas as consequências das mesmas não podiam ser-lhe imputadas. Eichmann nunca sequer pensou nas consequências; não era esse o seu papel, como referiu. Estava pois “inocente relativamente às acusações”. É interessante notar que Eichmann nunca negou as suas acções; o que ele nega é a sua consciência acerca das mesmas. A finalidade dos seus actos é inquestionável – mas, para Eichmann, essa finalidade nunca se colocou sequer...

Hannah Arendt, na época jornalista para o The New Yorker a fazer a cobertura do extenso julgamento de Eichmann, fez notar como era calmo e de aparência eficiente e bem inserida esse acusado, sem traços de violência doentia ou distorções de carácter. Homem zeloso, não tinha por desejo destruir, mas apenas fazer o que lhe competia. A questão que subjaz ao mal presente em Eichmann e que o levou a cometer um genocídio é a sua absoluta incapacidade de exercer a faculdade de pensamento. Eichmann não via para além do cumprimento da ordem, não raciocinava sobre esta; em suma, não dialogava consigo próprio sobre o curso das suas acções. A falta de auto-reflexão conduz a que Eichmann não tenha capacidades nem humanas nem morais. Era uma espécie de robot, que não unia causa a efeito e muito menos se colocava na pele alheia para observar o caso do ponto de vista das vítimas.

Desta experiência, Arendt retirou conclusões que modificariam profundamente o curso das suas próprias reflexões enquanto teorizadora política e humanista. Ela concluiu que o mal não é uma categoria abstracta, ontológica, metafísica. É, antes, algo absurdamente trivial, existe no espaço concreto e manifesta-se sempre que um homem escolhe exercê-lo (ainda que não pense nisso reflectidamente). O mal é uma escolha, pensada e muitas vezes não pensada, que encontra espaço num poder, que tanto pode ser pessoal como institucional. De facto, o mal é tão comum que pode até prosperar nas pessoas (cor)rectas. Sobretudo quando essas pessoas passam pela vida serenamente sem raciocinar.


... Só por curiosidade, Eichmann foi condenado por crimes contra a Humanidade. O vazio de pensamento não constituíu desculpa para a morte de milhões. As suas últimas palavras foram “Morro acreditando em Deus.” Não havia dúvidas da sua culpa, mas – ainda assim – muitos foram os que se emocionaram sinceramente com a sua morte. Como é estranho o tecido humano...